Fragmentos de obras expostas.
VER: http://www.lugardodesenho.org/005.aspx?dqa=0:144:0:12:0:0:-1:0:0
Mas eu sei que a palavra beleza não é nada, sei
que a beleza não existe em si mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma
verdade da qual ela não pode ser separada.
Sophia de Mello Breyner Andresen, Arte Poética I
Mar, rio, lago, cascata: estas palavras invocam imagens,
sejam de lugares que conhecemos ou inventamos. Permitam-me que use ambas,
imagens e palavras, para vos introduzir à possibilidade de acesso a um espaço
em que natureza e mundo se separam tanto quanto se une o que vemos, ouvimos, ou
sentimos de outros modos.
Diga-se assim, desde já, que estas paisagens não são apenas
para ver. Se, por um lado, nascem de memórias confusas ou sonhos acordados, se
aludem a lugares reais ou àqueles que a caprichosa necessidade do processo
transforma, ou se há narrativas que submetem formas ou formas que inventam
enredos, também trazem acordes de música no ar, vozes filtradas pelo meio de
outros sons, cheiros intensos que a cor destila, vento, brisa, calor, frio. Para
quem vive um quotidiano intensamente carregado com exigências do real, da razão
e dos outros, a pintura carece ser espaço de imensa liberdade, que permita que
o pensamento flua como for preciso e, sem barreiras, nexos impostos e
preconceitos, aceda a essa espécie de caldo primordial onde cada um, ao
encontrar-se a sério consigo mesmo, talvez pressinta um caminho para os outros,
de outro modo. Aqui, o que tem que ser, como disse Sophia do poema, “nem me pede uma ciência nem uma estética
nem uma teoria. Pede-me antes (…) inteireza”.
Em suma, se nestas obras há uma verdade lá no fundo, as
ideias imbuídas no ambiente e nos personagens não são apenas visíveis nem carecem
de recorte à lâmina, antes vivem submersas no todo que as faz e que elas afectam.
Logo, sem deixar de ser pintura e privilegiar
a superfície, abre-se à hipótese de regresso e invenção de um lugar onde
o espaço não tem dimensões e a pura visualidade não existe.
Aliás, tão ingrato como parcelar o mar e os rios será dizer
que estas paisagens são apenas território, pois o seu cariz interior e mental ou o tom bucólico não implicam que se
trate de um retrato, tanto quanto de uma elegia de um certo espaço natural. Se
existe potencial poético (e político) para uma alegoria, desvia-se claramente
da relação estrita com a natureza.
De resto, aqui o que interessa não é a natureza mas o mundo,
são momentos significativos do mundo que se expande e fragiliza. Nesse mundo,
onde os elos todos os dias se quebram
e multiplicam desenfreadamente, cabem reinos ainda mais vulneráveis,
como aquele de que Sophia também fala, “aquele
que cada um por si mesmo encontra e conquista, a aliança que cada um tece”. E,
se ele habita nas formas perfeitas das ânforas de barro antiquíssimas, talvez
também a pintura possa continuar a constituir acesso para uma ligação das
coisas.
Posso ainda dizer que, face a mostras anteriores, desta vez
há uma trama mais larga de histórias possíveis, situação de síntese e
transição. Mantém-se a aparência da paisagem onde se movem personagens,
contextos visuais e cenas que têm, por vezes, arranque em pretextos propiciadores:
ecos de uma ária de ópera ou de uma canção ligeira, impressões de um filme, um
facto real como uma frase numa parede ou uma mensagem de telemóvel. Antes já houve
uma morte numa piscina, rosas que foram pão e ao contrário, depois uma canção sobre
dar e pedir de volta e, sempre, ter e perder no vai e vem da vida; a seguir virá
um filme em que, no meio de uma tempestade, os bandidos mantém fora de abrigo
os indígenas que subsistem de artefactos feitos de conchas. Aqui, desta vez, a
questão que me coloco na preparação da história que se segue - abrandando o
ritmo e voltando talvez atrás num ponto da situação e reelaboração em que os
desenhos são essenciais – é descobrir como pode ser trabalhado o potencial humanista
e eventualmente político (para já apenas visualizável mediante clichés que nada
me interessam), armadilhando olhar e emoções por meios pictóricos.
Estou ciente, contudo, que as histórias em si valem o que
valem, quase sempre isso é pouco e não interessa o que foi ou é. Conta
sobretudo o que pode ser, ou seja, a capacidade dos pretextos para desencadearem
conexões cujo sentido ilumine com um grão de esperança, por um momento que seja,
o peso das coisas, o nosso imaginário e, desse modo, o nosso caminho no mundo.
Suponho que seja
para isso a arte. E nesta,
no seu conceito lato e multifuncional, persiste um reduto essencial que não se
traduz por grandes relações de causa e efeito, mas é discretamente decisivo no
movimento da vida através de nós, seja profundo como um rio subterrâneo ou
gasoso como as gotas contidas nas nuvens.
Sim, aqui, os rios nascem no mar.
... rivers are born in the sea
Saying that these
landscapes are just territory is so ungrateful as to parcel the sea and rivers,
because their interior and mental feature or their bucolic accent don’t imply a
portrait, as much as an elegy of a certain natural space. If there is poetic
potential (...) for allegory, it clearly deviates from the close relationship
with nature. Moreover, what matters here is not nature but the world,
significant moments in the world that expands and weakens. In such a world,
where every day ties are broken and wildly multiply, can fit even more
vulnerable kingdoms, like the one that Sophia also speaks about, "the one
that everybody for oneself finds and conquests, the alliance that each one weaves."
And if this kingdom lives in the perfect forms of ancient clay amphorae,
perhaps painting can continue to provide access to a connection of things.
(...)
Here, this time, the issue I put myself in the
preparation of the following story - slowing down the pace and perhaps back
into a reflection and re-elaboration stage where drawings are essential - is to
figure out how humanist and eventually political potential (for now only
viewable by clichés that do not interest me at all) can be worked, trapping
look and emotions by pictorial means.
Vozes da canção Loucos de Lisboa (Ala dos Namorados ou Rui Veloso).