segunda-feira, 26 de abril de 2021

ELA (2019)



Nora: He sells seashells by the seashore.

2018Acrílicas s/tela. 196x310cm 


Giuliana: Io non riesco a guardare a lungo il mare.

2018Acrílicas s/tela196x310cm


Fiona: There’s no white heather over there. 

2019Acrílicas s/tela196x318cm 

Rachael: If I didnt’ care.

2019Acrílicas s/tela196x302cm

 

















































































Saba: I hope it’s a girl so that she can be brave

2019. Técnica mista de tinta da china, aguadas, grafite e pastel, s/ papel. 154x154 cm






























Letty: without words, with wind.

2019. Técnica mista de tinta da china, aguadas, grafite e pastel, s/ papel. 150x150 cm


Ada: It’s not my speaking voice, but my mind’s voice.

2019. Técnica mista de tinta da china, aguadas, grafite e pastel, s/ papel. 150x150 cm





Diouana: Jamais plus, enlève tes chaussures!

2019. Técnica mista de tinta da china, aguadas, grafite e pastel, s/ papel. 150x150 cm































Gelsomina: Io ho piantato pomodori.

2019. Técnica mista de tinta da china, aguadas, grafite e pastel, s/ papel. 150x150 cm


Shi Li-Zhen: You notice things if you pay attention.

2019. Técnica mista de tinta da china, aguadas, grafite e pastel, s/ papel. 150x150 cm

























Marion: I only have to lift my eyes and once again I become the world.

2019. Técnica mista de tinta da china, aguadas, grafite e pastel, s/ papel. 150x150 cm


















































 ELA, 2019 - texto de Carlos Vidal


DUALIDADES, UNIDADE: LABOR DE EXPERIÊNCIA E EQUAÇÃO (DO VISÍVEL)

Sobre a pintura de ISABEL SABINO

 

 

Carlos Vidal

 

 

1.

Pensemos ou descrevamos em modo de inventário possível (que, no fundo, é impossível, pois a pintura também se produz/reproduz a si mesma, ela faz e refaz a sua realidade substancial e insubstancial[1]para além de inventários), portanto, em forma de inventário, para já não-significacional, pensemos nalguns dos aspectos físicos desta pintura que se nos adentrana percepção; isto é, na visão e no olhar flagrantemente atingidos; esta é uma pintura que ganha substância logo desde o seu surgimento em colectivas da segunda metade dos anos 70 (O papel como suporte, SNBA, 1977), e mais notoriamente desde 1985, ano das duas primeiras individuais da sua autora: na Pousada de Palmela e Viagem, na SNBA. 

     Mas… – interrompendo-me – já retomaremos a questão do “inventário” das fisicalidades e das matérias salientes nestas obras… Falámos igualmente de uma pintura que se adentrava, desde a sua, digamos, revelação pública, na percepção, olhar e visão. Deste modo, alterando um pouco a estrutura inicial deste texto, vejamos entretanto a forma deste “adentrar-se” – comecemos pois pelo que a visão constrói diante do que a pintura ela própria também constrói, passando seguidamente para o “inventário” das suas matérias (seja, a “coisa” física). 

     Ora, diria que se adentrao que se impõe, e impõe-se, ou tanto mais se impõe, aquilo que é fruto de cruzamentos de linguagens (sobretudo visuais, mas não somente): poesia, literatura, fotografia, viagens, fruto do vivido sem testemunho e intuído porque imaginado, mas também de momentos biográficos testemunhados em vários cadernos (e ainda namemória, o que talvez “pese” mais, pois a ideia vai além do registo – apesar dos Iluministas não o terem percebido, pelo menos não o perceberam quando Voltaire definia “ideia” como uma “imagem” na mente). As viagens, ou a série Viagemde 1985 em detalhe, demonstram que esta pintura sempre se deu bem com a própriapintura(e ei-la aqui testemunhada, esta boa relação, numa pintura partindo de inúmeras e nem sempre óbvias referências cinematográficas e literárias, ou naturais como as estações do ano e outros fenómenos); ou seja, esta pintura sempre buscou na pinturaa sua razão de ser “corpo”. O que não significa que ela não se reinventasse – não se reinvente – permanentemente pois, como disse, a pintura tanto é substancial quanto insubstancial, algo que, à maneira de Descartes, são formas de produção de verdade (o cogitoé claro, a imaginação também) e, neste caso, verdades pictóricas, simplifiquemos.

     Portanto, aqui, nesta “pintura cruzada”, o espectador tem de construir o seu lugar, nestas imagens o espectador constrói o “mundo” das suas imagens/linguagens pela ou na visão, mais do que pela matéria ou respectivo plano háptico (que também está presente). Por isso a autora escreve, no texto para a exposição São rosas, meu(2011), nada do que vemos corresponde a “sítio nenhum”[2]. Logo, o que vemos são imagens verdadeiras, mas de um “verdadeiro” totalmente construído, essência do cogitoque faremos abeirar-se da pintura. 

     Reversivelmente, estas imagens dizem-nos ou definem-nos o que é a visão. Isabel Sabino compreende esta dualidade perfeitamente, tanto na sua pintura quanto no seu texto (e muita atenção aos títulos e ao modo como se entretecem com o pictórico e o “produzem”). Ela, independentemente das matérias físicas, faz (a) pintura, mas sabe que esta está tanto no suporte do quadro quando no próprio mundo. Tal como o Olhar (Sartre) é o mundo que para nós se dirige. Isabel Sabino escreve: “tudo pode ser uma pintura”[3]. O que quer dizer que ela está no mundo junto ao Olhar do mundo (vemos, mas sobretudo somos vistos). E o que é que isto quer dizer? Que a pintura está no mundo, que é um seu equivalente, juntos influenciando-se congruentemente. E que, conforme vejo, o que vejo, como vejo (o Olhar), habita o mesmo mundo (só há um mundo, apesar de haver várias realidades, diria Maria Gabriela Llansol). Tudo está nessa amálgama de imagens: Olhar e mundo têm de ser congruentes: dizer que diante de mim estão imagens e não representações significa que diante de mim está aquilo que vê (retina, alma, consciência…) e o que é para ser visto. De outro modo. Nos anos mais recentes (e pensemos na última individual da autora, Four Seasons, Please!,(Lisboa, Gal. Arte Periférica, 2019) o cinema serve de mote (sempre serviu, e cada vez mais): William Dieterle, Victor Erice (cineasta que já procurara uma luz “perfeita” para a pintura filmando essa busca com Antonio López) ou Chris Marker, e ainda as estações do ano, que originam nas pinturas composições peculiares, divisões e velaturas, ou borrões onde se “refugiam” as figuras nos seus gestos basicamente quotidianos (ou “demasiadamente humanos”). Cada tela é assim duplamente visual (filme+pintura). 

     Ora, quanto mais reais, e já Stanley Cavell (The World Viewed)[4]nos falava do cinema como máquina de registo que podia ser passiva se não intervencionada, quanto mais reais são os meios mais nos fazem ter uma leitura subjectivada desse mesmo, nosso, real. É através das figurações ou invenções do real que entendemos o real – claro que não é através do que fica gravado na concavidade retiniana (pictura, em Kepler): nós não somos uma câmara escura. Pelo contrário, digamos diferentemente, nós é que a inventámos e aos seus limites: se esta regista (a sua película sensível, tão cara a Descartes como a Vermeer), nós especulamos: esta é a diferença entre a “visão empírica” e a “visão especulativa”. E “especulativa” é a nossa, humana e artística. Resumindo, o que vemos ensina-nos a ver. Faz-nos ver. Por isso é que Sartre nos diz que o mundo nos olha, a nós que também vemos e olhamos. Porque ele sabe que vai ser olhado e o olhar não pode habitar outro lugar (o mundo, e daí vem). Somos vistos, sim, mas igualmente vemos a partir do que edificámos para ver: a fotografia, a pintura e o filme são a forma como vemos e atribuímos significado ao mundo. Vejo e penso no que vejo a partir dos olhos de Kiarostami, Antonioni, Germaine Dulac ou dos relatos e viagens oculares no espaço-tempo de Chris Marker… Esta é a opção de Isabel Sabino, julgo poder afirmá-lo. 

 

2.

Há uma outra via, a de Marx ou Feuerbach que culmina em Guy Debord, mas não no puramente “dado” fenomenológico. Segundo Debord eu não vejo, quem vê é a mercadoria que eu sou (o que também é uma realidade incontestável do tardo-capitalismo) – mas, como ver é das actividades mais livres e livremente construtivas, eu posso dizer que vejo por mim, através de mim (pense-se nos títulos mais bizarros e marcantes de Isabel Sabino, que também integram a sua forma de ver) e que vejo através do que escolho como véu/filtro, sobretudo os meus filmes e os meus livros. Portanto, há aqui um ligeiro afastamento de Sartre e de Debord, para quem – no primeiro caso – sou apenas olhado e nesse momento me conheço, ou então – no segundo autor – nada vejo, mas tenho a imagem, mais forte do que eu a ligar-me aos outros. Note-se que, para Debord, o “espectáculo” não é o excesso de imagens, mas é antes a força que têm as imagens em estabelecer relações entre pessoas.

     Em Isabel Sabino, o domínio dos materiais, ou matérias (materiais actuantes e suportes) é de grande virtuosismo mas a sua pintura nunca prima pelo “espectáculo”, como disse. À partida, tudo aqui, a começar pelos títulos, parece irónico. Nesse sentido, a ironia espectaculariza ou espectaculariza-se. Mas eu retiro isto tudo da ironia e, a partir de Huizinga, coloco esta pintura no universo do jogo, do lúdico, sendo a arte a criação-resultado do ludens[5]e não do sapiens(Huizinga relido por Bataille). Muito menos isto é fruto da mímica do palhaço (funcional, em Huizinga). Cómica ou risível. Nem tão pouco a seriedade cinematográfica pode reduzir esta pintura a si, por ser dela um dos pontos de partida. 

     Tal como o jogo ultrapassa a realidade material física (redutível ao sentido), também esta pintura ultrapassa a realidade ficcionada do cinema, ou das suas películas que registam, de onde parte (assumidamente). Mas o jogo (Huizinga) necessita de “jogadores”, tal como esta pintura necessita de se cruzar com a literatura, o cinema e a própria pintura e sua história – tudo para encontrar a “significação primária” da pintura. Como é “jogo” (ludens, seguindo ainda Huizinga), ela convoca várias entidades e situações (e aqui é premente a consulta do catálogo para a exposição Tell me Lies,Galeria Novo Século, Lisboa, 2002, onde a autora produz um catálogo-revista que mistura referências ao duche matinal, a teoria do kitsch de Hermann Broch com a irrealidade inventada por Umberto Eco e os protocolos académicos), convocando-as para encontrar essa “significação primária” da pintura (uma das pinturas intitula-se, não por acaso, A artista explica) entre moda, estilos, desvarios e seminários, como em Baudelaire (moda, efémero e paixão), no seu “aqui e agora” do Pintor da Vida Moderna, ou, passemos ao plano prático, nas rápidas incisões no gesso-base e tinta acrílica: a pintura nasce do monocromo, obviamente – por isso Robert Ryman gostava da expressão “used painting” (a única possível?) para os seus monocromos brancos. Portanto, vinda do mundo, que é pintura (Isabel Sabino), ela já vem “meio” feita, usada. Por isso, a autora, nas obras de princípios de 2000, usa o acrílico como base pois tem de o intervencionar rapidamente (a sua secagem é rápida) e aí desfazer a forma figurativa, mais do que a edificar/apresentar. Há nesta pintura uma outra dualidade, ou várias dualidades, mas, apesar de ser o cinema que duplica mais imediatamente os mundos, a autora, como pintora (crente na pintura), faz do cinema uma série de factos que na pintura se perdem como pictóricos, gestuais, cromáticos, compositivos……. Ela duplica mundos além do cinema e faz deste mundo um mito. O Quotidiano!

     Ou seja, os seus mitos vêm daqui e sobre isto ela se refere. Escreve no catálogo de São rosas, meu: “já que tem que haver alguém, então que surja um ele, numa imagem com erros de transmissão, micro néons a piscar, e diga assim qualquer coisa como: - Vai ser preciso mandar arranjar o telhado e tapar as fendas, dar uma demão de tinta. O limoeiro este ano está maluco, também não admira com o que choveu, há limões até a cair no terreno do vizinho. E apareceram flores espantosas no meio das favas e das couves dos quintais, na net diz que são fungos mas parece que há um vírus novo que cria erros e este talvez seja um deles, senão vai ser preciso arrancar tudo. § De resto, não percebo o que se passa, mas é preciso cuidado com as flores. § Só que não há tempo agora, a ventoinha está a fazer um barulho esquisito, há que ver se. Voltar a ligar os cabos e substituir as lâmpadas fundidas. Arranjar folha de ouro para as molduras dos espelhos. § Vidros para a estufa (…)“. Ora os mitos desta pintura são estes, e estes, aparentemente triviais mas criados, deixam de o ser, passam à insubstancialidade: enquanto manifestos na pintura, são tão importantes ou irreais, duplos, como a tempestade de Key Largo(John Huston), as paisagens apocalípticas de Deserto Vermelho(Antonioni) ou o rosto melancólico da replicante Rachael de Blade Runner(Scott). Destas opções se deduz que aqui não se trata de operar no território de uma “pintura-pintura” (óptica, plana, à maneira de Greenberg), mas antes de uma pintura-mundo, porque, como atrás afirmado, o mundo é pintura.

 

3.

E voltamos enfim ao início do meu texto. Onde referia a importância da descrição ou inventário (possível e impossível, pois a pintura a tudo acrescenta algo) das matérias aqui empregues, usadas (Ryman); inventário de algumas realidades físicas que fazem alguns destes quadros (anos 70-80) parecerem “fugir” da parede e da sua bidimensionalidade. Entretanto, se o materismo, a relativizar contudo, extravasa a bidimensionalidade (flatness), a instalação supera a bidimensão e a tridimensionalidde, superando as disciplinas e seus atributos conhecidos – pintura, escultura ou fotografia e respectivas “fronteiras”. Na instalação nem sequer há hierarquias entre espectador e autor: o primeiro, receptor, é aspirado para a obra e, nela, conquista parte da sua “autoria”. Na instalação três fenómenos convergem: dissolvem-se, se é que não desaparecem mesmo, as disciplinas; desaparece a relação autor/espectador individualizada (passa a imersiva/participativa) e desaparece o contexto do “cubo branco” que não admitia ruído nem a presença significacional do espaço exterior (Brian O’Doherty).[6]Antes de falarmos dos materiais inéditos procurados pela autora, falemos um pouco de instalações, nem pintura nem escultura, mas arte do espaço completo e psicológico (tudo podendo culminar na “total installation” de Kabakov)[7]. Ninguém contempla uma instalação, buscamo-la intersticialmente e aí passamos a habitar, involuntariamente, o seu interior: somos instalação e seus co-autores, sempre. É uma nova etapa da matéria plástica que passa à condição de espaço multidimensional. 

     Como há uma relação entre instalação no seu “primeiro grau”, que é a obra realizada com objectos (as estantes de Haim Steinbach, por exemplo), e alguma pintura matérica em “fuga” do parietalismo, valeria a pena referir algumas das instalações da autora, para, de seguida, referir as suas matérias que levam, diria utopicamente, a pintura um pouco além da parede, sem ser tomada por “arte matérica” (ou informalismo; mas, note-se, já o “informe” de Bataille não andaria aqui longe…).

     Então, recentemente, Isabel Sabino realizou duas notáveis instalações: Ainda -D’Après Nuno Gonçalves (Museu Nacional de arte Antiga, 2011) e A Menina (não) fica em casa (Museu Militar, Lisboa, 2016). No primeiro caso, Sabino rebate, não só simbolicamente, os Painéisdo MNAA para a horizontal – não exactamente a horizontal perseguida por Pollock que depois foi perseguida por Warhol –, mas uma horizontalidade necessária e de ressonância política: vemos uma fila, no chão, de seis caixas ligadas, cada uma “apoiada” num espelho fino; cada caixa reproduz ou sinaliza, à escala, um dos Painéis. Cinco delas estão abertas e contêm hóstias, aqui símbolo da expansão da fé das “descobertas”. A obra fala-nos dos Painéis e, simultaneamente, apresenta-se como mundo escultórico autónomo. Obra simbólica, sim, ou por isso mesmo, quando alude à transubstanciação; aí ela consegue falar-nos da transubstanciação religiosa e de uma outra transubstanciação, a da obra de arte e da mutabilidade das suas significações, fazendo mesmo arte e religião tactearem-se. A Menina (não) fica em casa é uma obra potencial ou naturalmente politizada. Instalada numa das salas da Grande Guerra (revestida das famosas pinturas de Sousa Lopes), a instalação é constituída por uma trincheira e vitrinas de pinturas vermelhas, retratando o que a autora denomina de “Mulheres de Armas” (mulheres além do seu tempo estreito, portanto, como Maria Lamas), combatentes num lugar absolutamente forte, digamos, como os homens da “frente” (vanguardas), retratos de operárias que, no fundo, mantinham mundos vivos, e ainda guerrilheiras que o transformavam (ou transformam e intentam transformar).

     Deste modo, a instalação tende a indisciplinar a pintura, como a escultura, e algum materismo da autora (pelo menos até à segunda metade dos 90) pode agora ser enumerado: inúmeras vezes, a tela cede o seu lugar a tecidos de algodão ou chita (a pintura, a sua caligrafia, colide desta feita com padrões pré-existentes), a pedaços de gesso, aparite ou linóleo; óleos e acrílicos (este, o material actuante quase sempre escolhido) coexistem e misturam-se no visível plano(flatou uma flatnesspouco disciplinada, mas que se agarra ao suporte mesmo quando em nítido relevo) em matizada espacialidade com gessos não escultóricos e intervencionados como suportes, com traçados, linhas, “riscados” que se tornam parte integrante de uma caligrafia pictórica tendencialmente abstracta; vidros, zincos, argamassas, areias e colas, costuras do suporte recebendo sacos transparentes com enigmáticos objectos (ou pedras sem enigma), pequenos sacos-recipientes de interior desconhecido, passeando-se a autora por entre títulos despistantes e despistados (pela pintura, dirá também Isabel Sabino), enfim, pastas acrílicas ou camadas (espécie de abozzo) onde se desenha pictoricamente com descomprometidas mas regradas incisões, às quais a matéria “fala” e condiciona, do informalismo ao informe (entidades opostas, como explicitam, e bem, Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois).[8]

 

 

 

 

4.

Um último comentário aos títulos de Isabel Sabino: Chita com paisagemGatinhos de chocolate;Atirador de facas soft killerCãezinhos amestradosAtirador de facas roxo;Chico não me apetece escrever hoje;Zé Pedro o arquitecto vigilante;À beira do circoÀs paredes confesso – abstracta com friso;Com Mandrake; Combate fluvial; Oschapéus da BarbieDança das sombras bêbadas; BailinhoO papão da CamilaPrendas, gifts & regalos;As jóias esperadasÉ muito tarde, e vem aí chuva… O rádio toca baixinho la ultima noche. SnoozeInocentes ou pecadores, a nenhum a pele se aproveita;Na noite antes um cavalo tropeça num talo de couve;A casa dos espíritos: os antigos e os novos; Pratos do dia: chanfana ou caldeiradaHoje não fui ao shoppingGostava de estar aqui?Reality showEmbarque na aventura;Stridono lassù; Fly or fall, é consoante; You yourself live in the images;É preciso mandar arranjar o telhado;A ventoinha está a fazer um barulho esquisito;Four seasons, please…………. De um modo directo, Isabel Sabino diz-nos que as cores trocam as voltas aos títulos. Entretanto estes trocam também as voltas, ou pelo menos tentam, às cores; mas como cada tela é uma unidade (na dispersão aguada e na bravia natureza quase sem espaços vazios), não são talvez as cores que trocam as voltas aos títulos, é a pintura que não só lhes troca as voltas, como se lhes impõe a imagem do seu fazer. Interminável e persistente. Há um momento no Tractatus Logico-Philosophicus em que Wittgenstein escreve:

 

6.54      As minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele       

        que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido,          

        quando por elas se elevou para lá delas. (Tem que, por assim    

         dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela.)

        Tem que transcender estas proposições; depois vê o mundo a

         direito.

         Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em

                    silêncio.[9]

 

Pensemos nos títulos da autora como proposições. Entendemo-los, sim, mas não fazem sentido, apenas porque aquilo que fica do seu sentido é a pintura que os faz existirem. E se os títulos adquirem um ponto em que não fazem sentido é porque, algures, eles também quiseram ser pintura(s). Mais do que poemas ou proposições. É a partir daqui que nos despojamos da palavra, ou da imagem em movimento, para aportarmos ao pictórico. Que está sempre por construir. 

     Ora, como a pintura é uma arte organicamente sem termo (ou o poema contínuo), a relação entre palavra e quadro (fazendo-se) é uma incógnita. E esta é a incógnita da pintura, o que se passa entre a vontade e o quadro. Por isso se pode definir a pintura como a perfeita equação do visível.

 

 

 



[1]Confrontando o seu par acontecimento-verdade, de que a arte é uma das entidades produtoras (como a ciência, o amor e a política), Alain Badiou, prezando nesse par a irrupção do inédito que escapa ao conhecimento e se alicerça numa subjectividade radical, Badiou, dizia, vê em Descartes um “aliado” quando, em Les Méditations Métaphysiquesou Principes de la Philosophie, nos fala de verdades (artísticas, as que aqui nos interessam) que nada são fora do nosso pensamento: “Les vérités sont sans existence. Est-ce à dire qu’elles n’existent pas du tout? Nullement. Elles n’ont aucune existence substantielle.” Descartes por Badiou, Logiques des Mondes: L’Être et lévénement 2, Paris, Seuil, 2006, p. 13.

[2]Isabel Sabino, São rosas, meu, catálogo, Lisboa, Gal. Arte Periférica, 2011.

[3]Isabel Sabino, A Pintura Depois da Pintura, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2000, p, 230.

[4]Ver Stanley Cavell, The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film, Harvard University Press, 1971.

[5]Ver Johan Huizinga, Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura, trad. João Paulo Monteiro, S. Paulo, Perspectiva, 1980.

[6]Ver Brian O’Doherty, Inside the White Cube: The Ideology of the Gallery Space, University of California Press, 1986.

[7]Cfr. Ilya Kabakov, Über Die “Totale” Installatio / On the “Total” Installation, Ostfildern, Cantz, 1995, pp. 243-249 (Introdução ao problema).

[8]É a mais rigorosa releitura de Bataille, manifesta em exposição e livro: Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois, L’Informe: Mode d’emploi,Paris, Centre Pompidou, 1996.

[9]Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico, trad. M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 142.

 ELA, 2019 - Texto de Maria do Mar Fazenda com Isabel Sabino


Ela, corte e costura sobre a mesa da sala de jantar

- Conversa entre Maria da Mar Fazenda e Isabel Sabino

 

 

MMF

Algures no ano passado combinámos um café. Pouco tempo depois de nos sentarmos, tratávamo-nos por tu. O convite para trabalharmos no projecto de uma exposição foi aceite com prazer e na hora. Após algumas idas ao atelier e das intromissões decorrentes da vida nas nossas vidas percebemos que vivemos à distância de poucas ruas uma da outra. Na sua casa a Isabel tem um segundo atelier, a que se refere como a sala de costura. É uma divisão recolhida, mas que recebe luz durante todo o dia, onde, sobretudo, desenha. Foi ali que nos encontrámos e falámos entre outras coisas sobre os desenhos a integrar na exposição. Mas foi sobre a mesa oval da sala de jantar, divisão que na hierarquia doméstica, é por excelência, o espaço público da casa, que munidas das pinturas e dos desenhos impressos à escala, de tesoura e fita cola decidimos o desenho e a distribuição das obras na exposição. A correspondência que se segue começou após esta tarde de trabalho. Acompanhando a mesma deslocação do pessoal para o público: do quarto para a sala, do atelier para a galeria, da conversa para a escrita.

 

* 

Isabel, comecemos pelo início. Por ti. Como te descreverias? Como sintetizas a tua biografia profissional? Isto se te fizer sentido separar as águasentre a vida e o trabalho…

 

IS

Maria, é um bom desafio, mas não sei se sou capaz de responder, ou se é melhor começar por aí ou acabar. Se glosar aquele título antigo do Bernardo Santareno resumo que sou “portuguesa, pintora e professora, 64 anos de idade”. Para não fugir a um autorretrato, posso dizer ainda que me vejo como uma soma pouco aritmética de perfis, se calhar meio contraditórios e difíceis de manter em simultâneo, mas que não quis recusar até hoje, o que me tem obrigado a trabalho constante de conciliação de interesses. É que gosto muito de viver e há coisas diferentes que não quero perder. 

Claro que, ao fim de uns anos, pode ter ficado muito por fazer numa das frentes.  Acho que ter começado a ensinar cedo e ter tido uma filha nessa altura morando fora de Lisboa foram coisas que me afastaram de alguma dinâmica social e da geração que emergiu, e maior convivência teria, certamente, estimulado a própria produção criativa. Mas alguma independência também tem tido o seu lado bom. 

Isso vale na vida profissional e pessoal. Um artista ou uma mulher artista pode ser um/a intelectual ou académico/a, mas não vejo razão para não gostar de comer como qualquer pessoa, cozinhar, apanhar sol, dançar ou nadar, independentemente de ser um frete empurrar o carrinho do supermercado ou depilar as pernas para gostar mais de se ver ao espelho. 

 

MMF

Avancemos então em direcção à segunda ela…: esta exposição, que nos aproximou e sobre a qual esta conversa irá gravitar. Mas antes ainda, eu gostaria de saber o que sentiste quando recebeste o convite para apresentar o teu trabalho no salão da Sociedade Nacional de Belas Artes. Corrige-me se não for bem assim, mas tenho a ideia de que o convite que te foi feito pela direcção da SNBA tinha em mente uma exposição retrospectiva ou antológica, dado o teu currículo, mas também dada a escala física e simbólica da instituição. 

 

IS

Foi um convite em forma de desafio, que me apanhou totalmente, mas mesmo totalmente de surpresa e que percebi que se recusasse me iria arrepender. 

Penso que não havia ideia concreta sobre o carácter da exposição, isso pareceu-me em aberto. Na altura estava a terminar a série Four Seasons(que já não iria conseguir expor completa) e não me sentia nada preparada ou motivada para uma exposição retrospectiva, e o que me apeteceu então foi avançar com um projecto novo que tinha em mente, que exigiria um tempo que as datas logo apontadas limitavam demais. Por outro lado, também era um facto que tenho exposto muito trabalho ao longo de décadas com visibilidade restrita, pelo que também faria sentido uma exposição que, não sendo antológica, respigasse do meu percurso algumas linhas de trabalho mais vitais.

 

MMF

Nas nossas primeiras conversas e encontros no teu atelier fiquei contente com a cumplicidade que senti ao perceber que não só não tinhas uma tipologia de exposição concebida a prioricomo a concebias aberta ao diálogo e a um olhar exterior. Desde logo ficou claro que a exposição que começávamos a desenhar não se centrava num ponto de vista totalizador ou nostálgico. O desenho expositivo tomava antes como ponto de partida o presente, ainda que a sentir o vento do passado, que a cada vez que sopra transforma as visões do futuro. 

Para terminar este breviário sobre o formato da exposição, uma pequena confissão. Para mim, enquanto curadora, é uma novidade trabalhar num projecto expositivo com as características de uma exposição individual desta dimensão e em torno de um percurso artístico de várias décadas. E, tu és muito prolífera, produziste muito, trabalhas por vagas intensas e integras na tua pintura, diferentes campos intelectuais (mas já lá vamos…). Gosto de pensar no formato da exposição a que chegámos como um percurso pelo teu trabalho, pela tua pintura. As possibilidades de definição deste mapa — uma forma de pensar uma exposição — são inúmeras. Esta é uma. Ainda que seja plural porque são muitas as vozes convocadas na tua pintura. 

 

IS

Pois, eu penso que temos tido um encontro privilegiado, quer pela cumplicidade e o que tenho sentido como grande facilidade de comunicação, como pela atenção que revelas e visão certeira. Tens toda a razão sobre a minha relação com a pintura, o modo como funciona como um lugar múltiplo e cheio de ecos. Pode estar lá o passado, a memória, outras vozes de diferentes contextos, mas isso serve-me para pensar o presente e, se é indubitavelmente um espaço de liberdade que se contrapõe a tarefas do dia-a-dia, não é um lugar de evasão, mas de encontro. 

 

MMF

Ainda que o presente, a produção inédita e as pinturas mais recentes polarizem o desenho da exposição, gostaria de começar por falarmos de duas pinturas mais antigas e que na exposição sinalizam a abertura de dois itinerários: As linhas trocadas (2004) e À tona (1989). O protagonismo destas duas pinturas na exposição é-me meio enigmático ainda que tenha sido uma proposta da minha absoluta responsabilidade e sobre a qual não hesitei por um momento. São duas pinturas que se por um lado, me parecem insulares no conjunto da tua obra, por outro lado, entendo-as como genealógicas do teu trabalho. E, não por acaso, ambas as pinturas (ainda que muito diferentes entre si) remetem para o imaginário da arqueologia. Os fragmentos representados na pintura As linhas trocadaspoderiam ser os achados de alguma escavação arqueológica. Na pintura À tona,“eu vejo” os pedaços coloridos do muro de Berlim após a sua queda (e devo dizer que esta “evidência” foi constatada antes de saber a data da pintura). 

 

IS

Achei muito curioso escolheres essas duas pinturas para desenhar um percurso sobre o meu trabalho. A mais recente é paradigmática, até pelo nome que tem, do conjunto de obras de “À sombra das oliveiras”, de 2004, série especialmente onírica que refere um devaneio durante uma sesta que acaba por ser invadido por farrapos do real à mistura com filmes, canções, etc… O espaço dessas pinturas é espesso e labiríntico, cheio de estratos que se entrelaçam, cores vibrantes, e essa, em particular, brinca com a ideia de troca irónica de signos e figuras em espaços de mais séria coerência formal. A outra pintura que escolheste é, enviesadamente, consequência das imagens da demolição do muro de Berlim (por coincidência eu tinha nessa altura no atelier um calendário cheio de fotos espantosas do muro), e de outras paredes cobertas de inscrições, mas não é só isso.  Faz parte da série “História Inquieta”, uma narrativa que assume central a relação com a mudança do mundo e o medo da perda e da queda, marcada pelo fascínio por imensa pintura erodida pelo tempo que vi antes em Itália, mas também pelos filmes do Wim Wenders e pela leitura da Yourcenar, para não falar, no caso ainda dessa pintura concretamente, das imagens que vêm da época em que fiz mergulho. Tenho pena de não ter feito essa pintura de maiores dimensões, embora a escala não dependa do tamanho. E enfim, se fosse preciso ver o Damien Hirst em Veneza para imaginar uma civilização afundada, Atlântida não faria parte do nosso imaginário.

 

MMF

Ela, o título da exposiçãoentrecruzado com estas duas pinturas lembrou-me o título de um livro da Marguerite Duras: Détruire, dit-ellepublicado em 1969 e que também viria a ser o título de um filme, aliás o primeiro que Duras realizou inteiramente. Na sua escrita como no seu cinema há uma espécie de décalageentre a imagem e o som, a narrativa e a palavra, o que cria uma tensão que é também a sua força. Parece-me que o mesmo acontece com a escolha dos seus títulos em relação aos objectos que nomeiam. No teu trabalho os títulos são muito importantes. E penso que tal como para Duras, os teus títulos não servem necessariamente para evidenciar um caminho de sentido único de leitura das obras. O que nos diz um título de uma tua pintura? 

 

IS

Para mim um título pode dizer muito. Entre as muitas hipóteses de nome desta exposição, chegou a poder ser Diz elae, claro, a Duras estava aí presente. O facto desse título ter ficado de parte para não enfatizar demais a componente do discurso verbal no meu trabalho significa precisamente que os títulos são importantes, mesmo quando meramente identificativos. Frequentemente são muito mais do que isso, completam a dimensão visual, formal ou iconográfica para maior amplitude narrativa ou conceptual, quer facultando ou reforçando dados, quer desviando ou contrariando o sentido mais plausível, desse modo criando maior distanciamento ou opacidade na leitura. Em muitas pinturas há títulos que são frases. Em Os pássaros cantam, de 2009, os títulos das pinturas vêm do libreto da ópera que ali se “ouve”, Moses Und Aron, do Schoenberg. Em Talvez bombons, de 2014, são frases da canção do Jacques Brel. Nos desenhos de Four seasons, please!,de 2017 e 2018, os títulos são ações preconizadas pelo Borda D’Água. E nas pinturas e desenhos desta exposição, Ela, são sempre frases ditas por elas, as “heroínas” dos diversos filmes com que converso através da pintura.

 

MMF

Outra imagem para pensar uma exposição é a de uma cidade – à partida desconhecida mas sempre ficcional e transitória que nem uma Atlântida – com uma morfologia, luminosidade e edificações próprias; ou seja, as obras e os processos criativos do artista em causa e como as suas indagações práticas e teóricas se configuram num determinado momento. Tal como as cidades, as exposições têm uma meteorologia própria. Parece-me que esta exposição não ambicionando retratar todas as estações, traduz antes umaPrimavera deste ano de 2019. Escrevo com estranheza esta última frase com a data em que nos encontramos. Sinto que poderia ser o plotde um livro de ficção científica, que aliás é um género literário que já me revelaste ser da tua eleição. É uma sensação estranha a de que o viver-a-vida nos distancia do presente. Creio que a pintura também resgata esta forma de sobrevivência, também nos destaca do momento-presente. Mas como tu dizias, a pinturanão é um lugar de evasão, mas de encontro. A pintura, pelo menos, desde Las Meninasdo Velázquez, tem este poder inerente de renovar o momento-presente a cada vez que é olhada. Esta renovação também nos é devolvida ao deambular pela tua exposição, pelos espaços fragmentados e reconstruídos no plano incomensurável da pintura. 

 

IS

Tens toda a razão: já vivemos numa concretização da ficção científica. Que o digam o contraste acentuado das dimensões carnais e digitais nas pessoas, por exemplo no metro.  Está tudo agarrado ao telemóvel: uns no facebook, outros nos jogos, outros a comunicarem, outros a trabalharem a caminho de algures. E cada um tem a sua tipologia visual, ou informal ou altamente elaborada, das roupas aos cabelos e tatuagens, a diversidade aumenta. A próxima etapa é talvez haver implantes para se ter o smartphoneincorporado e um número de mamas ou outros órgãos adequado ao desejo. Portanto, sim, a vida oferece sumo de sobra à imaginação. Mas a imaginação também inventa por conta própria. 

 

MMF

A arte contemporânea é um modo incrível de contacto com coisas que desconhecemos, é, portanto, um lugar de aprendizagem e de conhecimento, porque, a limite, pode incluir tudo. E ao tornar novas histórias possíveis, a arte traz à luz imaginários desconhecidos que partilham possibilidades de entendimento da vida. E disto é sinal a multiplicidade de camadas com que operas na tua pintura. Sejam as várias artes com que “conversas”: a própria pintura, a ópera, a literatura, a poesia, a música, o cinema mas também o quotidiano; sejam as várias disciplinas e temas “respigados”: a história e a teoria da arte, a história e a estrutura da sociedade, a política e as suas formas de mediação, o futuro e as preocupações ambientais mas também o dia-a-dia; para, em suma, operares segundo várias acções: pintar, escrever, falar, ensinar, cuidar, conhecer mas também viver. A recorrência (mastambém) à biografia e à auto-biografia – e aqui, em particular, falamos da vida no feminino – surge nesta listagem, quase uma litania, porque, afinal: De te fabula narratur (1996). E assim como agora recorri ao título de uma pintura tua para sintetizar o que dizia, poderia ter renomeado cada um dos temas com que lidas na tua Pintura(1984) com títulos de obras tuas. Como se processa o fazer de uma pintura? Tens um método de trabalho ou é a vida — um momento vivido, um livro, uma personagem, um sonho, …. — que elege a estratégia, o suporte, a medida e a intensidade desse fazer? 

 

IS

O método no processo criativo varia. No fundo tem decorrido de necessidades diferentes, tanto podendo ser disciplinado como assistemático. 

Já houve casos em que estava a viver situações pessoais concretas que precisei de metaforizar em obra, de modo que “aquilo” lá estivesse e a função catártica se cumprisse na medida do possível, mas abrindo um quadro mais amplo de conotações, um sentido mais alegórico. Também houve inquietações existenciais, definidas ou vagas, que despoletaram séries que, a partir de um certo momento do processo de pesquisa (às vezes avançado), permitiram identificar no seu interior um “atilho” conceptual (uma espécie de MacGuffin, como dizia o Hitchcock) que normalmente estava lá desde o início por descobrir. É o caso das duas versões da canção do Jacques Brel na série “Talvez Bombons” (2014). 

Mas também já parti simplesmente da necessidade de experimentar soluções materiais, técnicas ou espaciais, ou até, ainda mais simplesmente, do desejo de usar uma cor apetecível, necessária, num dia qualquer, por exemplo. Depois, no processo, surgem outras exigências narrativas e a procura de elos significativos de outro modo. No fundo há necessidades (compreensão, de expressão, comunicação, etc.) a par de uma ideia de trabalho e de investigação, se calhar meia perversa, do género: e se eu pensasse melhor nisto, e se eu trabalhar isto? Quando digo perversa é porque a criação artística junta os paradigmas da formiga e da cigarra no trabalho do artista.

 

MMF

Tenho identificado uma série de ligações entre esta exposição que se intitula “Ela”, também em referência a ti, pintora, mulher, mas também, à própria pintura, e um livro de Deborah Levy intitulado: Coisas Que não Quero Saber. Esta escritora nascida em Joanesburgo, mas que se mudou com a família para Inglaterra ainda em criança, tem-se dedicado sobretudo à dramaturgia, mas nos últimos anos começou a escrever romances. E, recentemente foi desafiada por uma editora a escrever um ensaio partindo de um texto já escrito. Things I Don’t Want to Knowé uma resposta ao ensaio de George Orwell Why I Write,de 1946. Levy retoma as razões da escrita, mas agora da perspectiva de uma mulher escritora. Ainda que ela divida o seu livro em quatro capítulos que seguem as premissas apontadas por Orwell: Objectivo PolíticoImpulso HistóricoPuro EgoísmoEntusiasmo Estético, reorganiza-as segundo uma nova ordem e sobretudo reinscreve-as ampliando e misturando a sua escrita e a sua vida num ensaio auto-biográfico. Por outro lado, a sua escrita, talvez por vir do teatro, é muito imagética e parcelária, entrecruzando diferentes vozes: memórias pessoais, notícias, citações, etc. Sinto que segue operações próximas da composição do teu imaginário: através de recortes, enquadramentos, redimensionamentos de estratos vivenciados e ficcionais que se dissolvem numa única poção – a pintura, a escrita. A um dado ponto no livro, Levy afirma que é a história da hesitação que é o motivo da (sua) escrita. Achas que a pintura pode ser aproximada da escrita através desta ideia de hesitação, no cenário composto pelas diferentes frentes políticas, históricas, vivenciais e estéticas?

 

IS

Não conheço essa autora e fico curiosa sobre o modo como retoma Orwell e sobre as vozes que integra. A ideia de hesitação parece interessante, presumindo referir-se à ambivalência inerente ao gesto criativo na suspensão aparente da vida nesse gesto ou na concretização da vida no acto de criar, a dúvida entre fazer ou não fazer, arriscar errar ou não arriscar, ou a própria escolha subjacente a tudo. Nesse sentido, escrever (ou pintar), mesmo nos casos em que se apaga o que se fez antes, têm bastante em comum. E ambas acabam por resolver a dúvida, a hesitação, na decisão. Implicam ações generativas. Mas o Blanchot sugere também outra possibilidade, quando imagina um livro por vir à semelhança do Coup de Désdo Mallarmé que, bastante visual e marcado pela abertura semântica, exige que o leitor faça a sua parte na convivência do legível e do visível. E, na porosidade e complementaridade de que preciso entre a pintura e a escrita e na hesitação de passagem, ainda me fascina mais a ideia dele de que qualquer livro (obra) que faça pensar, aumenta não o que sabemos mas, sobretudo, o desconhecido, ou seja, o mistério. É como uma fonte em que, quanto mais água se tira, mais ela nasce.

 

MMF

Sim, concordo com essa definição de hesitação em confronto com uma ideia de mistério (o desconhecido, o vazio, o silêncio) mas que também é desejo (o que está latente, o que está por completar, o que é pregnante). Finalmente, e noutra latitude de significados, também associo a hesitação a um bloqueio, a uma branca, à dúvida e nesse sentido a um fragmentar do pensamento, da imaginação e da memória. E o trabalho criativo parece-me que reside nessa constante reorganização e agregação de vários fragmentos que são voláteis e que ganham diferentes forças a cada vez que são iluminados ou lidos. Como dizias que acontece na leitura do Coup des Dés. Para mim, este poema do Mallarmé não só uma obra de arte no sentido gráfico-visual, da distribuição das palavras e dos seus sentidos a dançarem na página, como a sua leitura é performativa. Para a leitura de um poema, assim como para a pintura, todo o corpo é convocado. A partir de que momento a coreografia do observador/leitor entra em jogo na tua pintura? Ou, por outras palavras, sendo que não estou certa que seja coincidente, em que momento é que pensas na recepção do teu trabalho? 

 

IS

Confesso que faço por evitar pensar demais nisso. Por um lado, lido com o “outro” constantemente, no trabalho como professora, o que me obriga a um desdobramento e escuta atenta muito exigentes e cansativos. Isso faz com que, quando entro no meu espaço criativo próprio, precise de me concentrar a fundo e evitar dispersões, num silenciamento necessário do mundo, para que, em seguida, ele regresse de modo filtrado.

Mas a entrada do observador acaba por acontecer inevitavelmente, e não é só porque alguém entra fisicamente no estúdio. No estúdio exterior só entra quem convido, mas na sala de casa, onde também trabalho, o que está na parede ou em cima da mesa é bem visível, embora seja mais difícil aceder ao trabalho de concepção e ligação em cadernos, notas soltas ou no computador. 

O “outro” que vê, ou que lê o que faço, está presente de outro modo, por vezes insidioso. É como um hackerdentro da minha própria cabeça, a tentar aceder a tudo. E nem sempre tenho boa opinião desse hackerpessoal, que representa o “outro”, ou porque tem um lado sabotador de excesso crítico, ou porque se coloca do lado do senso comum ou do mainstream, o que pode ser perigoso. Como muito do público que vê exposições (ou que, cada vez mais, não as vê), os observadores variam: ora elegem banalidades ou falsas questões, ora surpreendem com uma ideia que espanta e ilumina e abre diálogo, quanto mais não seja para a obra seguinte. Para isso é que um trabalho é tornado público: ao expor-se, pode abrir-se de vez.

 

MMF

As pinturas e os desenhos mais recentes, que ocupam um lugar central na exposição, tomam como ponto de partida diversos filmes. Já disseste que as pinturas d’Elas (como eu as chamo) partem de personagens (todas elas mulheres) e de determinadas frases enunciadas por elas nessas encenações. A que filmes correspondem as vozes das pinturas de NoraGiovannaFionaRachael? E porquê estes filmes?

Por outro lado, calculo que o ambiente visual, a atmosfera emocional e a narrativa dos lugares congregados nestes filmes também contribuam para esse metaforizarem obra de que falavas... Arriscaria dizer que para a pintura partes desta constelação de factores diegéticos e que para os desenhos o foco seja mais o MacGuffin da história… quase como se tratasse de duas escalas de acção: a do romance e a do short story, a música sinfónica e a música de câmara: a pintura e o desenho, respectivamente.

 

IS

O cinema tem estado muito presente pois, além da presença na minha vida há mais de 15 anos do meu amigo genial que faz filmes, vi cinema antes de saber ler, pelo que muitas memórias emocionais remotas se associam a filmes. E nestes há a riqueza da visualidade, sobretudo dinâmica, nas histórias que falam com pessoas e som. Na ópera – que uso noutras ocasiões - também há isso, mas aí o espaço do palco condiciona mais a entrada do mundo exterior, há uma codificação mais estrita. O écran do cinema facilita a relação com espaço pictórico e a mobilidade do olhar, a relação com a entrada simulada do espectador. Ou seja, aqui continuo também a resposta à questão que puseste antes: penso na entrada no observador, sim, também desse modo, permitindo acesso narrativo e voyeurismo.

Portanto, nesta série, deixo que as imagens dos filmes - à partida escolhidos em longas listas de interesses e procuras que não cessam de aumentar, com as falas das mulheres que de lá vêm e que funcionam como casos - interajam com imagens provenientes da realidade, dos dias de hoje. 

A Nora (do Key Largo, do J. Huston) fala connosco sobre o mundo/casa que se vende como conchas; a Giovanna (do Il Deserto Rosso,do M. Antonioni), que não pode olhar para o mar, explica ao filho que os pássaros já não passam ali; a Fiona, na cidade que só emerge no tempo por um dia a cada cem anos (Brigadoon, Vicente Minnelli), impõe que não se possa sair dali para não se quebrar o feitiço - o que me recorda o Brexit; e a Rachael (Blade Runner, R. Scott) é uma andróide que chora ao saber que nem o passado é dela, nem sequer o futuro, só lhe restando o presente ameaçador, e aí as lágrimas dela confundem-se ainda mais com as tintas quando estou a terminar essa pintura e o Idai passa por Moçambique, abrindo tragicamente mais uma cicatriz na nossa relação com o presente e o futuro.  

As outras “elas”, nos papéis, continuam o mesmo tipo de deambulação no real, com o político, a ficção e o poético, em possíveis narrativas abertas. Tens razão quanto a alguma diferença de densidade em relação às telas; os desenhos são short stories.

E, na prática, o trabalho em pintura, desenho ou escrita faz-se de partes sempre incompletas de algo como uma conversa no estúdio com autores e coisas da vida que ali entram, seja qual seja a porta, a janela ou a clarabóia de entrada.

 

MMF

Proponho fazermos uma elipse, algo que também acontece a um dado momento na distribuição das pinturas na exposição, neste nosso diálogo. E que voltemos ao início, ao fechamento deste círculo que começou na descrição de ti e da tua relação com o teu trabalho. O que acrescentarias mais?

 

IS

Eu diria que um eixo fundamental no meu trabalho é o da relação com a realidade. “Ela” é a realidade e também a natureza, a ilusão, a ficção, a narrativa poética, a voz feminina. Há assim um húmus que vem de trás, no processo criativo, com a vida pessoal, o que acontece comigo e à volta, o que vejo e leio, claro que com entradas de muitos campos, desde as notícias à literatura e poesia, ao cinema. Na série do Dilúvio, de 2001, bastante presente nesta exposição, há a narrativa bíblica mas também a sociedade das imagens e uma resposta catártica a uma crise pessoal, mas é o que vi das inundações de Moçambique em 2000 que marca a procura de uma tela algo lamacenta em que o gesto rápido do desenho grava sinais.

 

MMF
Diria que estes sinaisgravados na tela lamacenta (uma outra imagem poderia ser a do bloco de cera, como era visualizada a memória na Grécia antiga), são sinais no duplo sentido da palavra: são traços e sintomas que inscrevem o presente no passado mas também são presságios ou diagnósticos do futuro. Como quando viajamos, especialmente de comboio, geramos uma sequência de memórias e imagens que sobrepõe tempos e velocidades. Talvez também seja este duplo movimento backward/forward que uma exposição proponha. E, nem de propósito, Viagemé o título da exposição individual que apresentaste na Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1985. Desenhando uma elipse ainda mais larga, também tu estás de volta a este lugar, regressada de viagem.

IS
E em seguida a viagem continua, vamos lá embora!