terça-feira, 30 de novembro de 2021

Lido com ela

Isabel Sabino, 2019
Realidade Kruel 4 - Lido com pintura
Tec. mista s/papel. 50x65cm 
 

Isabel Sabino, 2019
Realidade Kruel 3 - Um anjo
Tec. mista s/papel. 50x65cm 

Isabel Sabino, 2019
Realidade Kruel 2 - O mundo dos engelheiros
Tec. mista s/papel. 50x65cm 

Isabel Sabino, 2019
Realidade Kruel 1 - A bruxa do Oeste
Tec. mista s/papel. 50x65cm 
























Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 23
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 22
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 21
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 20
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 19
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 18
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 17
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 16
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 15
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 14
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 13
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 12
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 11
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 10
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 9
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 8
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 


Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 7
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 6
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 5
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 4
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 3
Téc. mista s/papel, 16x16 cm

 

Isabel Sabino, 2019
Lido com personagens 2
Téc. mista s/papel, 16x16 cm



 

Isabel Sabino, 2019

Lido com personagens 1

Técnica mista s/ papel. 16x16 cm

Lido com ela | texto 2

Do olhar como uma das belas artes

Emília Ferreira

 

Da memória como uma das belas artes

 

Antes de Proust, já Wenceslau de Moraes, escritor e oficial da Armada Portuguesa, sabia que a memória é um aflorar ao presente de flashes provocados por sensações. Uma construção posta em marcha, a partir de um qualquer pormenor evocador. Paralelo constructo é realizado pela pintora Isabel Sabino na exposição individual “Lido com ela”, apresentada na Galeria Municipal Artur Bual. Mais de três dezenas de obras, entre desenho e pintura, de pequena e média dimensões, criadas entre 2011 e 2019, apresentam uma apetecível pluralidade de vias de interpretação de dois temas/pretexto: o cine-teatro Lido, ex-libris da cidade da Amadora actualmente desactivado, e a paisagem. 

Intervenção sobre o contemporâneo tema do arquivo, abrindo a porta à memória, Isabel Sabino apresenta, nesta exposição, uma via dupla de abordagem: referindo e intervencionando o documento fotográfico da memória do edifício, na sua série de desenhos; e captando as cintilâncias da paisagem rural, urbana ou pictórica, na série de pinturas. E devolve-nos uma visão mais ampla da cidade e das suas possíveis envolventes, e do que esse contexto nos dá. 

 

Do Cinema como uma das belas artes

 

Nem sempre o observador tem a sorte (ou cai na armadilha) de lidar com um texto do autor que o ajude a descodificar o visível, os modos como arrumou as ideias em imagens e como nos abriu a porta da sua mente para que pudéssemos visualizar as suas memórias, processos, sonhos, temores, destroços, fragmentos cintilantes. Em “Lido com ela”, a pintora Isabel Sabino oferece-nos, a par do desenho e da pintura, um texto em que nos esclarece os múltiplos sentidos da palavra Lido: de margem baixa e estância balnear a adjectivo ou verbo de várias vias hermenêuticas, até ao nome do cine-teatro da Amadora. A pluralidade interpretativa possível dispara em várias direcções e deixa-nos o território da imaginação disponível para poder ser convocado à vontade. 

O título escolhido para a exposição toma particular sentido na selecção de desenhos da primeira sala. Pequenos, como minúsculas janelas para o passado, estes desenhos cruzam a memória do cine-teatro Lido com a recordação que a sua antiga função deixou no colectivo. Para qualquer um de nós, as construções têm a relevância das memórias que nos criaram, dos sonhos em que nos fizeram embarcar e das mais diversas experiências que nos proporcionaram. 

É isso também a memória da cidade. Como faríamos nós a caixa de memórias de cada um dos edifícios que construíram a nossa vida e o nosso imaginário? Eis como Isabel Sabino nos oferece a sua visão da memória colectiva que constitui esse edifício emblemático: apresentando-a como um emotivo álbum de recortes no qual se misturam realidade e ficção, em que documentos se cruzam com evocações, e se confere à construção a mesma legitimidade de um discurso histórico e rigoroso. Mas como o faz a artista? Recorrendo a imagens fotográficas do velho edifício, e a técnicas mistas que incluem colagem, desenho e pintura. A colagem cria as sobreposições de informação fotográfica, incluindo registos de cartazes de filmes. Com essas sobreposições, as memórias nutrem-se de fantasmas e disparam em diversas direcções. A isso se junta o uso do desenho. Utilizado como uma espécie de registo caligráfico, ele risca a superfície do papel como quem sublinha uma memória, uma palavra num livro, ou um movimento num ecrã há muito desaparecido. Inscreve de modo incisivo a visão da autora sobre o arquivo pré-existente. A pintura abre uma porta ainda mais íntima: com o recurso a manchas fortes, impressivas ainda que pontuais, ela permite-nos assistir ao filme da sua memória, no que diz respeito ao cruzamento de referências e de risos, de perplexidades e fascínios que fazem a nossa relação com o cinema. 

L’invitation au voyage, obra que escolho pelo seu título (inspirado no filme homónimo de 1927, da realizadora surrealista Germaine Dulac) de convite a essa viagem interior, pelo seu carácter fragmentário, evoca desde logo essa característica da memória. Assim, a sua construção, em eterna mutação, junta-se às múltiplas personagens que associamos às nossas idas ao cinema e que aqui reencontramos. As crianças, as senhoras com penteados armados, e os próprios actores e protagonistas, em corpos que se confundem com as amplas cores luminosas saídas da grande tela para nos invadirem os olhos e habitarem a memória. Humphrey Bogart, Laureen Bacall, Marilyn Monroe, Joseph Cotton, Charles Chaplin, Jacques Tati, Gene Kelly, Vasco Santana e Ribeirinho a um tempo personalidades e personagens míticas do cinema, desfilam numa mesma paleta combinada de películas internacionais e nacionais, e misturam-se com personagens ficcionais: Indiana Jones, o anjo de Wim Wenders, ou o mais recente Joker. Como num “Cine Paradiso” de Isabel Sabino, as recordações do cinema cruzam o edifício, uma possível (crível) programação — evocada em recortes de cartazes e em emotivos apontamentos de cor que, retirados das próprias imagens fotográficas (incluindo pormenores que sublinham a presença do painel cerâmico de Cecília de Sousa), fazem pensar em flashes de cor que permanecem nos nossos olhos e inundam a memória. As fotografias servem, portanto, de pretexto. Sobre elas, desenho, pintura e colagem compõem memórias (ou reconstruções de memórias) como quem conta uma história de que restam apenas vestígios. 

 

Da paisagem como espelho das belas artes

 

Passo agora à pintura. E, mais uma vez, vale a pena insistir na construção da memória. Vestígio é, por isso, uma palavra chave neste trabalho. Vestígio e testemunho, alerta para o despertar da consciência. Não é sempre esse o trabalho dos artistas? Revelar o que antes não conseguíramos distinguir, entre o emaranhado de linhas do quotidiano. Para qualquer um de nós, a ideia de paisagem é tecida com os afectos que o nosso contacto com a realidade nos deixou, com as sensações em que ela nos fez mergulhar e com os artistas que nos deram a ler de modo mais claro o que antes era apenas uma linha de horizonte a dividir o céu e a terra. É essa a memória da paisagem.

E, mais uma vez, urge perguntar: e como no-lo dá a ver Isabel Sabino? Com pinceladas rápidas, criando um registo gestual (o que significa literalmente que se reconhece o gesto do pintor na criação da imagem), ou com detalhadas recriações de lugares amorosos (casas velhas, lagos onde navegam brinquedos, árvores metamorfoseadas em citações de pintura). Em tudo se reconhece a atenção ou a demora do olhar. Apesar da reconhecível rapidez da pincelada, não há pressa nesta pintura. Há, antes, um tomar do tempo na observação do real, como se percebe pelo modo como, com poucos meios (pinceladas fortes, impactantes; poucas cores, doseadas de modo a sugerir sem revelar em excesso), nos é dado reconhecer os referentes da paisagem — ou seja, a informação visual que identifica os temas, os lugares “descritos”. E assim encontramos paisagens distintas. Campos desertos, apenas povoados por poderosos verdes e ocres, com ocasionais árvores; linhas (ou rasgões de luz) modelando o horizonte; montanhas sustendo o nosso olhar sob céus sombrios... Entre horizontes amplos ou encerrados por planos montanhosos, aguardam-nos cintilâncias, lugares definidos, em que repousamos olhos e alma, ao evocarem espaços familiares, memórias reconhecíveis como comuns. 

Há também, declaradamente, a passagem do tempo, mais uma vez com a ironia de fundir a evocação das quatro estações (Four seasons) com uma certa ideia de luxo prometido, em paisagens preparadas em pacotes e oferecidas através de cadeias de hotéis. No termo desta visita, em que também cabem apontamentos de distopia para nos alertar para quanto do consumo é show off (título de duas pinturas das mais recentes), o tempo é o grande elemento presente. O tempo e a sua aguda consciência.

A inegável melancolia destas imagens parece inscrever-se num momento crepuscular. Como se a memória fosse esse fulgurante instante histórico em que o testemunho de uma vida (de um edifício e da sua história; de uma paisagem; de uma vida com os seus sucessivos acontecimentos a caminho do inexorável fim) ganha a urgência de ser recordado antes do derradeiro apagamento. E a urgência, nestes tempos em muito crivados de sombra, de recuperar a paisagem sob a gloriosa luz do primeiro olhar deslumbrado. 

Apesar da melancolia, sente-se um sorriso benigno. E, se no final da visita à exposição o céu estiver plúmbeo e de lá tombar, fria, a chuva, talvez ao abrir o guarda-chuva nos ocorram algumas notas felizes. 

A memória é nossa. Existe connosco. E continua a beliscar-nos e a fazer-nos sorrir. É esse também o papel da arte: abrir-nos os sentidos a novos modos de olhar e reconhecer o quotidiano e o que dele julgamos saber, para sair mais fortes. Ou seja, deslumbrados e inquietos. 

 

Almada, 21 de Novembro de 2019.



[1] A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.  

Lido com ela | texto 1

 LIDO com ela

 

Lido, [1] s. m. tipo de costa baixa, de emersão, de praias com lagunas isoladas do mar por cordões de areia que a sedimentação vai aumentando; praia; designação moderna de alguns estabelecimentos balneares à beira-mar, ou com piscinas; [2] adj. instruído pela leitura; sabedor; versado; entendido. (De ler);   [3] 1ª p. sing. v. intr. trabalho; labuto; afadigo-me; combato; convivo; v. tr. toureio;  [4] n. p. cine-teatro em ruínas na Amadora.

 

Uma parte já foi vista, outra ainda não. Na série aqui fechada, em pedaços de coleções recentes e peças novas ainda sem rumo certo, podem ler-se histórias na terra e uma única história. Longe ou aqui no fim da rua. 

Por exemplo, há ecos de adolescentes mergulhos submarinos na suspeita de atlântidas. E há uma mudança de século em ilha poupada por extensas inundações depois de chuvas diluvianas das quais, com a subida das águas do mar distante, morre muita gente inocente. Inquietação vinda de antes de telas e piaçabas, precoce e intrometida, não se imiscui só em desabafos sobre o mundo em revolução permanente, muros repintados, a paisagem em perda ou cidades a afundarem-se perto de nós, numa beleza melancólica e convulsiva. Se a realidade faz inventar réplicas reluzentes, salvados e peluches noutro planeta risonho, não é apenas por causa de árvores, animais, queimadas, buracos no céu, negros ou com estilhaços de estrelas caídas, cascatas que ascendem na terra de pernas para o ar. É, sobretudo, por ela perante a sombra que alastra, tornando ainda mais preciosa a luz, a vida, o destino irregular das sementes e, em tudo, a beleza (...) que também passa sozinha

Uma cena banal, que passa num filme ou na realidade, pode ser por isso como um jogo de apostas (do tipo sim ou não?): um cai e outro levanta-se banhando-se em águas que fluem, sob o atento olhar de beija-flores, fadas minúsculas ali em cima, anjos mínimos - episódio no limite do real e do onírico, matéria profunda que transcende imagens e faz pintura. Se tudo acaba pó e cinzas, há pigmentos antes das trevas e, também por isso, um brilho ainda, fugaz. Decorativo? Tanto como um grão de areia no lido, tanto como o lido no litoral: como numa moldura, um ponto estabelece um tête-a-tête com o fora e o dentro.  

No entanto, este filme não passa no cinema. E nada disto é filmável, nem sequer pelo anjo de N.-D. Os que andam aí empoleirados em catedrais, ninhos de cegonhas, postes de alta tensão ou outras torres por dentro das moléculas do gelo fundente, esses não filmam, não fotografam, nem figuram papagaios das consciências.  Vêem tudo ou quase tudo, ouvem, sabem tudo o que, no seu próprio instagram, contam a Deus Pai, enquanto este dorme a sesta ou fuma um charuto por ter decidido que já chega: saibam que estão por conta própria.

Eles, os anjos, comentas? Digo: também. 

Portanto esses (sem sexo na tradição ou sexuados porque sim) ecoam como aves em trinados, melodias e desarmonias, sussurrando aos ouvidos ou desafinando aos berros o que mal conseguimos ouvir: dentro da cabeça ou do coração, onde se escutam mesmo os avisos sérios. 

O anjo que me cabe é uma ela, acho. Tem mau feitio. Só canta quando há silêncio, sotto voce e, para mal dos meus pecados, dá fífias e percebe-se mal o que diz. E quando ela passa nem sempre o mundo sorrindo se enche de graça, lamento. 

Hoje, vai a solo. O que aponta entranha-se nos olhos da alma, por aqui, no fulgor das redondezas, no Lido e no não lido.

Isabel Sabino, novembro 2019

Lido com ela | Dez2019-Jan 2020