O genius loci, o sol e as caixas
Choveu durante quase todos os dias do simpósio. Através dos vidros das enormes janelas da galeria onde se trabalhava, as nuvens escureciam o ar e traziam bátegas de água repentinas, por vezes logo seguidas de clarões de sol pálido. Dentro do espaçoso atelier improvisado, nós pintores, pouco íamos falando uns com os outros, afundados em tentativas de encontros possivelmente mais turvos do que o próprio tempo que fazia. No meu caso, a questão passava por reavaliar pesquisas e projectos superficialmente contextuais, elaborados antes da vinda sob informação contemporânea exterior, em favor de um mais verdadeiro genius loci que, agora, urgia encontrar. Pacientemente (porque o processo da pintura é assim mesmo, falível na sua predeterminação, lento e, por vezes, contraditório), havia que proceder a novos estudos, espreitar fontes na biblioteca local, elaborar revisões conceptuais, realizar registos fotográficos, ensaios gráficos, pictóricos, até ir dando com o lado mais autêntico que teria de acontecer na pintura propriamente dita, que nasce e vive (pensa-se) dentro do processo, respirando-se então doutra maneira, como no mergulho…e, às vezes, até custando emergir.
Ao contrário do ano anterior, havia menos visitantes, uns vinham espreitar e não diziam nada, outros ficavam e faziam perguntas, voltando mais tarde, curiosos e irregularmente atentos à nossa própria capacidade de integração da sua presença, diálogo ou abstracção. Um ou outro permanecia, silencioso, durante horas, como aprendiz ou espectador vigilante de um show em que o mais importante raramente é, de facto, visível, porventura compreendendo que o processo da pintura vive também da tensão entre opostos, desde esse seu quase excesso da visibilidade (o modo como se dá a ver, mais ou menos sedutor conforme os casos) até àquilo que o motiva e determina em essência, a “declaração do pensamento” em seu “interior segredo” .
O espectáculo da pintura, no tempo em que outros se oferecem com maior impacto imediato e mais fortemente partilháveis, não é questão linear. E, no entanto, o que de mais importante se mantém na definição de pintura passa por aí, não pelas suas características objectuais – porque hoje uma pintura pode ser praticamente qualquer coisa – mas pela sua capacidade de acontecer como experiência comum. É esta que abre na pintura um espaço potencialmente comum, um espaço “público” que decorre do recurso a uma “língua” identificável como tal (como pintura, por muito “expandida” que seja) e do seu apagamento parcial na capacidade de gerar sentidos, coincidentes ou não, entre leitores. E, se a ideia de espectáculo ainda hoje implica que são disponibilizadas qualidades susceptíveis de atracção do olhar, de observação, reflexão e testemunho, então que não fique dúvida: onde a pintura acontecer, sejam bem-vindos ao show, seja este discreto ou não.
Mas, como eu dizia lá atrás, quando aqui cheguei trazia na bagagem o projecto de encontrar cores locais a partir da memória afectiva de habitantes de agora e, rapidamente, compreendi que corria o risco de confundir mapas impressos e ideias feitas com uma hipotética rede real de sentidos.
Se, por hipótese, o genius loci viera do céu, não fora certamente através de noções alheias sobre site-specific ou do zoom do satélite mais a jeito. Constatei haver uma espécie de rede vinda do oceano que desenha a cidade desde tempos remotos, com lógicas que elegeram lugares principais consoante a relação com o mar e as actividades decorrentes. Nacarada de cores matizadas pelos mitos e pela realidade que muda, essa rede regressava do mar emergindo como um submarino depois de ter partido a cavalo, trazia conchas e peixes sob o céu cheio de estrelas, barcas de pedra e metal que contornavam os leixões, rochedos transformados em cais maternal em frente de um rio que a areia e o verde bordavam, agora gigantescos muros abertos ao mundo do presente.
Havia ainda uma santa, mulher caprichosa na escolha entre margens, havia um senhor que nadava sem um braço e um braço que nadava sem senhor e, finalmente, uma caixa onde as mulheres que ficavam na praia guardavam o sol para os dias de Inverno, matizadinho de cores.
Perante tamanha riqueza, que outra coisa podia eu fazer senão receber esta dádiva e aprender com ela?
Uma série de desenhos, duas telas, cores daqui, umas limpas e sujas outras, foram a caixa virtual onde ficou um pedaço de tempo, sol ou não, a gratidão dos novos afectos e a certeza que, para lá de uma geometria evidente mais ou menos cartesiana que o corpo visível da cidade impõe cada vez mais e os pontos cardeais ajudam a ler, com ou sem GPS, o espírito deste lugar vive nas entranhas do ar, na terra e nas muitas águas doces e salgadas, nas folhas que se agitam ao vento, nas flores raríssimas da praia e, acima de tudo, na memória das pessoas, mesmo quando elas não o sabem.
Com esta presença que guardo e de que não me despeço, posso escrever finalmente, porque é coisa impossível de pintar, sobre a grata e inesquecível prenda que foi a gentileza manifestada pelas pessoas da Câmara Municipal de Matosinhos, da Galeria Municipal, da Cooperativa Árvore, que me proporcionaram esta experiência, bem como o interesse dos visitantes locais e ainda a companhia atenta e delicada do Vítor Costa e do Francisco Laranjo, a quem dedico um abraço especial, também reservando um sorriso cúmplice para a lembrança das tintas salpicadas e o vernáculo do Alejandro, nos dias em que certas nuvens cinzentas se instalavam, desde cedo, por cima do mar que, como nós, pintava.
Isabel Sabino, Abril 2009
Desenhos técn. mista s/papel 1,5mx1,5m (aprox.)e pinturas a técn. mista de acrílicos s/tela, 1,3mx1,6m (aprox.)
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