E os pássaros cantam
Cinco da manhã, o tempo deixa-se ouvir e a cor da penumbra, um estranho laranja dos candeeiros da rua, insinua números. E letras.
Mas depressa se rompe o alinhamento das palavras recém-formadas em surdina e os olhos constróiem figuras que corrigem as frases.
Há então uma piscina parada como um frasco fechado de compota onde, a qualquer momento, vai jorrar uma mangueira pousada na berma. Alguém cobre a cabeça com um saco de plástico, nu da cintura para baixo. Alguém cobre. A cabeça.
O silêncio cai. Um odor torna-se mais forte, é verde cortado de fresco com pingos de mercurocromo.
Depois o sol brilha na superfície da água, ouro, turquesa, cristal. O paraíso existe no instante de um reflexo e uma mulher inacreditavelmente antiga aprende a nadar para o caso de se afogar alguém. Enquanto alinha os braços na geometria conveniente desfia mentalmente tarefas e incómodos: o arrumador de carros; o que se aproximou no semáforo com um borrifador e uma esponja para limpar o pára-brisas; o que bateu à porta para colocar propaganda de hipermercados na caixa do correio; e aquela pessoa que telefonou a dizer que havia um prémio no seu nome em tal lugar-assim-assim; e, no meio disto, há que sacudir o pó de talco da touca de banho obrigatória, fazer a lista de compras para o jantar com aquelas pessoas que tem de ser, vestir uma blusa diferente, não é incómodo nenhum, nem pensar nisso, gosta muito de os ter. Cá. Pois.
Aplausos discretos. Clap clap.
Nesses dias não tem receio dos assaltos, mas não é só isso. Precisará de uma mão amiga que lhe abotoe o colar, como na hidro-ginástica, onde chega sempre meia hora antes.
Pensa alto: não tenhas medo, aqui todos se conhecem. E repete: não tenhas medo; aqui todos se conhecem. Repete comigo, diz.
Aqui.
Dois homens abraçam-se, com grandes palmadas nas costas. A tinta alastra.
Pela boca aberta da mangueira sai agora gelatina de morango e os mais miúdos nadam para lá, com uivos de satisfação e as bóias subitamente iluminadas por dentro. Não tenham medo. Aqui só se entra se. E daqui ninguém pode sair. A não ser.
A água torna-se mais opaca e, no fundo, há uma sombra que mal se percebe e que alguém tenta apagar, esfrega com mais força, outra vez, outra.
Não há meio de desaparecer. Deixa lá.
De qualquer modo, já poucos se lembram como era.
Um pescador de pérolas mergulha, claramente fora de compasso e quatro figuras sobem, como anjos numa ascensão. Uma luz azul, um nó na garganta. Um filme que não se consegue ver de novo. Ao fundo há uma paisagem verde, edénica também, onde irrompe um grande cartaz com um número de telefone – coisas de que as pessoas devem precisar.
Mas da intriga poucos sabem, tanto tempo antes dos sapatos deixados ali na beira, inúteis. E a história, essa, cedo ou nunca se vingará da arrogância dos funcionários oficiais e dos avisos nas árvores em redor das piscinas vazias cujas tintas infectaram letras e figuras, rangendo razões como unhas no gesso.
Assim neste momento já parece tarde demais, por isso escreve o que falta no vidro embaciado do balneário, com o dedo, devagar, para não te lembrares depois, pensa ela. Do lado de lá, caída, há uma luva com dedos cortados. Coisa turva. O vidro ou o olhar?
Longe, um eléctrico sobe a rua devagar, desafinando um guincho familiar nos carris, e a cor da neblina espera que os corpos se desaconcheguem da noite.
E seis e um quarto e já ruído de passos no andar de cima. Num estrondo, há então um colar que cai, o fio quebrado, as contas espalhadas. Perdidas pérolas a metros de profundidade, o ralo escancarado.
Um automóvel arranca.
No mapa que continua desconexo, os traços brancos fazem uma espécie de cantos. E vai-se ver é alcatrão, são rectângulos vazios de carros que antes lá estavam.
Restos outros. Lágrimas secas. Reprivatizadas como deve ser, sem bóias nem gomas coloridas, pois tocar em certas guerras fere os dedos, a não ser que estejam idas. E basta.
Portanto assim seja, “constrói cerimónias”, diz na página tal, abre o teu caminho entre vulgaridades de que se repleta o mundo, a razão a contar menos, as emoções a ditar o trilho a partir da sua hipótese e verdade, mesmo em águas muito fundas, abaixo da tona que te trava.
Nada com força, nada convicta. O lugar é este e é este o caminho, o rasto passa depressa mas é o teu. Mergulha. Salva-te.
Talvez batam palmas, mas.
Agora, através das janelas das traseiras a luz malva recorta perfis.
Os pássaros cantam. Stridono lassù, Nedda dizia. Cantam até quando há lugares sobre os quais supomos que não voltam a voar.
Ouve-se o canto.
Mesmo não se vendo, lá estão eles.
Por isso, no ténue claro-escuro que os espelhos não reflectem (ainda), desenha-se um sorriso.
E fica cá.
Isabel Sabino, Outubro de 2009
Texto da exposição na Galeria Arte Periférica, 30 Out-3 Dez 2009
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