Agora, a matéria perde densidade e o muro parece dissipar-se numa névoa de diferentes texturas.
O espaço unifica-se, para que o olhar corra no entrelaçado das frases visuais. Como nas óperas incompletas a tecer debates entre personagens que escutam o eco da imagem e outros que precisam da solidez da geometria para preservar o esqueleto das ideias, o quadro é apenas uma aparição de uma história em aberto, cujas cores, nem sempre alla prima, trocam as voltas aos títulos.
Tudo pode acontecer, saltos, avanços, regressos. Estou-me nas tintas, penso como posso a cada momento: das caixas de imagens (ou de chocolates) à síntese hipotética, a enormidade e a voracidade dos mundos tornam raras a pureza das formas e das ideias, contaminação inevitável.
Aqui, neste laboratório de ecos, é impossível o cristal.
A paisagem não é, pois, de sítio nenhum. Só existe aqui e, como não cabe em cada quadro, continua de uns para os outros, sem moldura possível que não a do próprio corpo que cresce para além da pele, na narrativa profunda da sua inexplicável mutação. A periferia torna-se o centro e não existe dentro e fora, embora se possa inventar sempre a esperança de lugares aprazíveis, belos quartos protegidos ou paraísos, destinos de sonho afinal como aquelas bonecas eslavas que vão saindo umas das outras até se chegar à última, um coto do tamanho de uma impressão digital. O mapa cerrou-se à volta de tudo.
Mas haja, por exemplo, um jardim.
Com luz artificial e ventoinhas, plantas e flores, árvores de grande porte e pequenos arbustos, ervas de cheiro, mas também legumes, frutos comestíveis, lugares para guardar alfaias e telhados para um sono aconchegado, é um lugar perfeito, onde nada está no seu lugar – como se inúmeras mãos estivessem lá a trocar as coisas e os seus nomes, as rosas por pão ou cereais em vez disso.
Ou seria ao contrário, na lenda?
Debaixo das folhas das árvores que voam e tombam amarelas e verdes ou violetas, o chão foge para o coração das paredes e estas incham, incapazes de guardar tantas memórias impossíveis, desfazendo-se como papéis na água. Borrões elevam-se das paletas, como vinhetas de banda desenhada. Redentoras, dão vontade de rir, sem sabermos porquê.
Agora, só falta voltar a inventar as pessoas para fingirmos que este mundo foi feito para elas.
Portanto, já que tem que haver alguém, então que surja um ele, numa imagem com erros de transmissão, micro néons a piscar, e diga assim qualquer coisa como:
- Vai ser preciso mandar arranjar o telhado e tapar as fendas, dar uma demão de tinta.
O limoeiro este ano está maluco, também não admira com o que choveu, há limões até a cair no terreno do vizinho. E apareceram flores espantosas no meio das favas e das couves dos quintais, na net diz que são fungos mas parece que há um vírus novo que cria erros e este talvez seja um deles, senão vai ser preciso arrancar tudo.
De resto, não percebo o que se passa, mas é preciso cuidado com as flores.
Só que não há tempo agora, a ventoinha está a fazer um barulho esquisito, há que ver se. Voltar a ligar os cabos e substituir as lâmpadas fundidas. Arranjar folha de ouro para as molduras dos espelhos.
Vidros para a estufa. Anti-fungos para as rosas.
No chão que abafa os passos aparece ela, de repente, entre a folhagem, pronta a espingardar saliva no speed da fala:
- Quais rosas, meu?
Nesta altura, retiramos o som à personagem e ela fica pequena de novo, na orla do arvoredo. Figura pintada, tinta a fazer-se e a desfazer-se, não importa, toca-se, sente-se nos dedos: olhos no quadro all-over, como diversamente souberam Pollock e Poussin e repete, agora, o papagaio do vizinho.
De novo, quais rosas?
Silêncio.
Fiquei sem sinal, disse.
(Texto que acompanha e exposição "São rosas, meu", em breve na Galeria Arte Perférica)
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