Do olhar como uma das belas artes
Emília Ferreira
Da memória como uma das belas artes
Antes de Proust, já Wenceslau de Moraes, escritor e oficial da Armada Portuguesa, sabia que a memória é um aflorar ao presente de flashes provocados por sensações. Uma construção posta em marcha, a partir de um qualquer pormenor evocador. Paralelo constructo é realizado pela pintora Isabel Sabino na exposição individual “Lido com ela”, apresentada na Galeria Municipal Artur Bual. Mais de três dezenas de obras, entre desenho e pintura, de pequena e média dimensões, criadas entre 2011 e 2019, apresentam uma apetecível pluralidade de vias de interpretação de dois temas/pretexto: o cine-teatro Lido, ex-libris da cidade da Amadora actualmente desactivado, e a paisagem.
Intervenção sobre o contemporâneo tema do arquivo, abrindo a porta à memória, Isabel Sabino apresenta, nesta exposição, uma via dupla de abordagem: referindo e intervencionando o documento fotográfico da memória do edifício, na sua série de desenhos; e captando as cintilâncias da paisagem rural, urbana ou pictórica, na série de pinturas. E devolve-nos uma visão mais ampla da cidade e das suas possíveis envolventes, e do que esse contexto nos dá.
Do Cinema como uma das belas artes
Nem sempre o observador tem a sorte (ou cai na armadilha) de lidar com um texto do autor que o ajude a descodificar o visível, os modos como arrumou as ideias em imagens e como nos abriu a porta da sua mente para que pudéssemos visualizar as suas memórias, processos, sonhos, temores, destroços, fragmentos cintilantes. Em “Lido com ela”, a pintora Isabel Sabino oferece-nos, a par do desenho e da pintura, um texto em que nos esclarece os múltiplos sentidos da palavra Lido: de margem baixa e estância balnear a adjectivo ou verbo de várias vias hermenêuticas, até ao nome do cine-teatro da Amadora. A pluralidade interpretativa possível dispara em várias direcções e deixa-nos o território da imaginação disponível para poder ser convocado à vontade.
O título escolhido para a exposição toma particular sentido na selecção de desenhos da primeira sala. Pequenos, como minúsculas janelas para o passado, estes desenhos cruzam a memória do cine-teatro Lido com a recordação que a sua antiga função deixou no colectivo. Para qualquer um de nós, as construções têm a relevância das memórias que nos criaram, dos sonhos em que nos fizeram embarcar e das mais diversas experiências que nos proporcionaram.
É isso também a memória da cidade. Como faríamos nós a caixa de memórias de cada um dos edifícios que construíram a nossa vida e o nosso imaginário? Eis como Isabel Sabino nos oferece a sua visão da memória colectiva que constitui esse edifício emblemático: apresentando-a como um emotivo álbum de recortes no qual se misturam realidade e ficção, em que documentos se cruzam com evocações, e se confere à construção a mesma legitimidade de um discurso histórico e rigoroso. Mas como o faz a artista? Recorrendo a imagens fotográficas do velho edifício, e a técnicas mistas que incluem colagem, desenho e pintura. A colagem cria as sobreposições de informação fotográfica, incluindo registos de cartazes de filmes. Com essas sobreposições, as memórias nutrem-se de fantasmas e disparam em diversas direcções. A isso se junta o uso do desenho. Utilizado como uma espécie de registo caligráfico, ele risca a superfície do papel como quem sublinha uma memória, uma palavra num livro, ou um movimento num ecrã há muito desaparecido. Inscreve de modo incisivo a visão da autora sobre o arquivo pré-existente. A pintura abre uma porta ainda mais íntima: com o recurso a manchas fortes, impressivas ainda que pontuais, ela permite-nos assistir ao filme da sua memória, no que diz respeito ao cruzamento de referências e de risos, de perplexidades e fascínios que fazem a nossa relação com o cinema.
L’invitation au voyage, obra que escolho pelo seu título (inspirado no filme homónimo de 1927, da realizadora surrealista Germaine Dulac) de convite a essa viagem interior, pelo seu carácter fragmentário, evoca desde logo essa característica da memória. Assim, a sua construção, em eterna mutação, junta-se às múltiplas personagens que associamos às nossas idas ao cinema e que aqui reencontramos. As crianças, as senhoras com penteados armados, e os próprios actores e protagonistas, em corpos que se confundem com as amplas cores luminosas saídas da grande tela para nos invadirem os olhos e habitarem a memória. Humphrey Bogart, Laureen Bacall, Marilyn Monroe, Joseph Cotton, Charles Chaplin, Jacques Tati, Gene Kelly, Vasco Santana e Ribeirinho a um tempo personalidades e personagens míticas do cinema, desfilam numa mesma paleta combinada de películas internacionais e nacionais, e misturam-se com personagens ficcionais: Indiana Jones, o anjo de Wim Wenders, ou o mais recente Joker. Como num “Cine Paradiso” de Isabel Sabino, as recordações do cinema cruzam o edifício, uma possível (crível) programação — evocada em recortes de cartazes e em emotivos apontamentos de cor que, retirados das próprias imagens fotográficas (incluindo pormenores que sublinham a presença do painel cerâmico de Cecília de Sousa), fazem pensar em flashes de cor que permanecem nos nossos olhos e inundam a memória. As fotografias servem, portanto, de pretexto. Sobre elas, desenho, pintura e colagem compõem memórias (ou reconstruções de memórias) como quem conta uma história de que restam apenas vestígios.
Da paisagem como espelho das belas artes
Passo agora à pintura. E, mais uma vez, vale a pena insistir na construção da memória. Vestígio é, por isso, uma palavra chave neste trabalho. Vestígio e testemunho, alerta para o despertar da consciência. Não é sempre esse o trabalho dos artistas? Revelar o que antes não conseguíramos distinguir, entre o emaranhado de linhas do quotidiano. Para qualquer um de nós, a ideia de paisagem é tecida com os afectos que o nosso contacto com a realidade nos deixou, com as sensações em que ela nos fez mergulhar e com os artistas que nos deram a ler de modo mais claro o que antes era apenas uma linha de horizonte a dividir o céu e a terra. É essa a memória da paisagem.
E, mais uma vez, urge perguntar: e como no-lo dá a ver Isabel Sabino? Com pinceladas rápidas, criando um registo gestual (o que significa literalmente que se reconhece o gesto do pintor na criação da imagem), ou com detalhadas recriações de lugares amorosos (casas velhas, lagos onde navegam brinquedos, árvores metamorfoseadas em citações de pintura). Em tudo se reconhece a atenção ou a demora do olhar. Apesar da reconhecível rapidez da pincelada, não há pressa nesta pintura. Há, antes, um tomar do tempo na observação do real, como se percebe pelo modo como, com poucos meios (pinceladas fortes, impactantes; poucas cores, doseadas de modo a sugerir sem revelar em excesso), nos é dado reconhecer os referentes da paisagem — ou seja, a informação visual que identifica os temas, os lugares “descritos”. E assim encontramos paisagens distintas. Campos desertos, apenas povoados por poderosos verdes e ocres, com ocasionais árvores; linhas (ou rasgões de luz) modelando o horizonte; montanhas sustendo o nosso olhar sob céus sombrios... Entre horizontes amplos ou encerrados por planos montanhosos, aguardam-nos cintilâncias, lugares definidos, em que repousamos olhos e alma, ao evocarem espaços familiares, memórias reconhecíveis como comuns.
Há também, declaradamente, a passagem do tempo, mais uma vez com a ironia de fundir a evocação das quatro estações (Four seasons) com uma certa ideia de luxo prometido, em paisagens preparadas em pacotes e oferecidas através de cadeias de hotéis. No termo desta visita, em que também cabem apontamentos de distopia para nos alertar para quanto do consumo é show off (título de duas pinturas das mais recentes), o tempo é o grande elemento presente. O tempo e a sua aguda consciência.
A inegável melancolia destas imagens parece inscrever-se num momento crepuscular. Como se a memória fosse esse fulgurante instante histórico em que o testemunho de uma vida (de um edifício e da sua história; de uma paisagem; de uma vida com os seus sucessivos acontecimentos a caminho do inexorável fim) ganha a urgência de ser recordado antes do derradeiro apagamento. E a urgência, nestes tempos em muito crivados de sombra, de recuperar a paisagem sob a gloriosa luz do primeiro olhar deslumbrado.
Apesar da melancolia, sente-se um sorriso benigno. E, se no final da visita à exposição o céu estiver plúmbeo e de lá tombar, fria, a chuva, talvez ao abrir o guarda-chuva nos ocorram algumas notas felizes.
A memória é nossa. Existe connosco. E continua a beliscar-nos e a fazer-nos sorrir. É esse também o papel da arte: abrir-nos os sentidos a novos modos de olhar e reconhecer o quotidiano e o que dele julgamos saber, para sair mais fortes. Ou seja, deslumbrados e inquietos.
Almada, 21 de Novembro de 2019.
[1] A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
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