segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Lido com ela | texto 1

 LIDO com ela

 

Lido, [1] s. m. tipo de costa baixa, de emersão, de praias com lagunas isoladas do mar por cordões de areia que a sedimentação vai aumentando; praia; designação moderna de alguns estabelecimentos balneares à beira-mar, ou com piscinas; [2] adj. instruído pela leitura; sabedor; versado; entendido. (De ler);   [3] 1ª p. sing. v. intr. trabalho; labuto; afadigo-me; combato; convivo; v. tr. toureio;  [4] n. p. cine-teatro em ruínas na Amadora.

 

Uma parte já foi vista, outra ainda não. Na série aqui fechada, em pedaços de coleções recentes e peças novas ainda sem rumo certo, podem ler-se histórias na terra e uma única história. Longe ou aqui no fim da rua. 

Por exemplo, há ecos de adolescentes mergulhos submarinos na suspeita de atlântidas. E há uma mudança de século em ilha poupada por extensas inundações depois de chuvas diluvianas das quais, com a subida das águas do mar distante, morre muita gente inocente. Inquietação vinda de antes de telas e piaçabas, precoce e intrometida, não se imiscui só em desabafos sobre o mundo em revolução permanente, muros repintados, a paisagem em perda ou cidades a afundarem-se perto de nós, numa beleza melancólica e convulsiva. Se a realidade faz inventar réplicas reluzentes, salvados e peluches noutro planeta risonho, não é apenas por causa de árvores, animais, queimadas, buracos no céu, negros ou com estilhaços de estrelas caídas, cascatas que ascendem na terra de pernas para o ar. É, sobretudo, por ela perante a sombra que alastra, tornando ainda mais preciosa a luz, a vida, o destino irregular das sementes e, em tudo, a beleza (...) que também passa sozinha

Uma cena banal, que passa num filme ou na realidade, pode ser por isso como um jogo de apostas (do tipo sim ou não?): um cai e outro levanta-se banhando-se em águas que fluem, sob o atento olhar de beija-flores, fadas minúsculas ali em cima, anjos mínimos - episódio no limite do real e do onírico, matéria profunda que transcende imagens e faz pintura. Se tudo acaba pó e cinzas, há pigmentos antes das trevas e, também por isso, um brilho ainda, fugaz. Decorativo? Tanto como um grão de areia no lido, tanto como o lido no litoral: como numa moldura, um ponto estabelece um tête-a-tête com o fora e o dentro.  

No entanto, este filme não passa no cinema. E nada disto é filmável, nem sequer pelo anjo de N.-D. Os que andam aí empoleirados em catedrais, ninhos de cegonhas, postes de alta tensão ou outras torres por dentro das moléculas do gelo fundente, esses não filmam, não fotografam, nem figuram papagaios das consciências.  Vêem tudo ou quase tudo, ouvem, sabem tudo o que, no seu próprio instagram, contam a Deus Pai, enquanto este dorme a sesta ou fuma um charuto por ter decidido que já chega: saibam que estão por conta própria.

Eles, os anjos, comentas? Digo: também. 

Portanto esses (sem sexo na tradição ou sexuados porque sim) ecoam como aves em trinados, melodias e desarmonias, sussurrando aos ouvidos ou desafinando aos berros o que mal conseguimos ouvir: dentro da cabeça ou do coração, onde se escutam mesmo os avisos sérios. 

O anjo que me cabe é uma ela, acho. Tem mau feitio. Só canta quando há silêncio, sotto voce e, para mal dos meus pecados, dá fífias e percebe-se mal o que diz. E quando ela passa nem sempre o mundo sorrindo se enche de graça, lamento. 

Hoje, vai a solo. O que aponta entranha-se nos olhos da alma, por aqui, no fulgor das redondezas, no Lido e no não lido.

Isabel Sabino, novembro 2019

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