segunda-feira, 26 de abril de 2021

Ela 2019 - texto de Isabel Sabino


Ela

(e o espaço da pintura) 

 

a)

Quando está no duche, ela ouve sempre tocar o telefone fixo. De há uns tempos para cá, já não se enxuga à pressa para verificar se tocou, pois aprendeu a duvidar do que ouve e sabe que o que for ou tiver que ser soará, de novo, mais tarde. Assim, quando fica pronta e livre de ecos, escolhe música pop ou ópera no lado da casa voltado para o sol e para o jardim lá em baixo, habitado por pássaros. Depois, na sala de costura, outros ecos a esperam.

Isto porque está sempre à escuta. E acaba por sentir-se animada por vozes, principalmente femininas, que digam coisas que ampliem mundos ou ritmos soltos e cadências que a façam dansar. Precisa dessadansa(com “s”, como escreveu a poetisa) antes de pensar desenho ou pintura, como se ajudasse o corpo a adaptar-se a um vestido em execução. Com a escrita isso não acontece, porque para ela o corpo fica, por assim dizer, dispensado no trabalho (embora a Clarice diga que escreve com o corpo).

Aht uh ma hed, ouve numa canção. Como se a cabeça chegasse.  Miss qualquer coisa mais solta e plena. Por isso costura e tece, com fios de seda invisível, tons que, por vezes, entre o oscilantemente seco e molhado da tinta, ligam as coisas e os pedaços de si própria.

 

b)

Com tanto eco e reflexo, por vezes desaparece a linha de separação entre o que é real e irreal, ou o que é natural ou não. E, se tanto arealidadecomo a naturezaa situam, ela respira na falta de brisas com o verde da clorofila e das algas, entre aparições consecutivas e com elas, num jogo de ilusões e verdades. 

Ouve Rachael que, por exemplo, acredita que um certo passado é seu e, de repente, sabe que não é assim: as fotos de família que preza são, afinal, uma invenção.

Ela também é cada vez mais feita de reflexos, de vozes, de tempos e espaços para além dos seus, num mundo que, assim, se dilata, ficando estranha e sedutoramente múltiplo, desnaturalizado, frequentemente alheio. Frágeis fios a ligam a esse palco escancarado e que se afunda. Preciosos, tem que cuidar neles a salvação possível, fazer deles uma jangada, como terra firme perante o mar que invade tudo e as conchas que, diz Nora, se vendem. Também sabe há algum tempo, por Lúcia, figura melancólica no umbral de uma paisagem apocalíptica pintada por ela, da metamorfose possível do medo através do arresto dos olhos, janelas da alma, na pele que, afinal, não é apenas a superfície das coisas nem será nunca uma tese académica convencional.


c)

Num caderno copiou: “Não é uma ficção, embora ele não seja capaz de pronunciar sobre isso tudo a palavra da verdade. Aconteceu-lhe qualquer coisa, ele não é capaz de dizer o que seja verdadeiro, nem o contrário. Mais tarde, pensará que o acontecimento consistia nessa maneira de não ser verdadeiro nem falso”[1]

Talvez por isso alguns artistas operem múltiplos de si, desdobrando-se em outros, que são seus reflexos. Ela, como a caixa de um caleidoscópio, convoca a luzem presenças com que dialoga, sem lhe importar se são reais ou não. Mas interessam-lhe os nomes: Nora, Giuliana, Fiona, Sophia, Germaine, Clarice, Lucia, Adília, Maria. O seu a seu dono. Neste caso, dona.

 

d)

Assim, quando chega ao quarto da costura, escuta sempre muito atentamente. Elasfalam quase sempre enquanto trabalham. Uma corta um pedaço de pano em cima da mesa e comenta a novela da véspera; outra alinhava duas peças uma à outra e responde que aquela personagem é mesmo má, enquanto a que está de pé, que cola entretela com o ferro de engomar, com ele no ar ameaça o que faria se fosse ela, política de arremesso de objetos domésticos na era de trumps; depois riem-se da que está sempre distraída junto da janela e nunca ouve o que dizem. Esta remata agora uma casa para um botão e não tem vontade de rir porque lhe dói a barriga quando o período está para vir.

Mais adiante outra chuleia uma bainha de um tecido rígido, com um fio que lhe fere os dedos. Não usa dedal. Não gosta porque a frieza do metal lhe faz mentir o corpo.

 

e)

Ela lembra um dia, quando a terra e a ciência eram tomadas como certas, em que uma sumidade afirmou: que a bidimensionalidade ou planitude era a única coisa que a pinturanão tinha em comum com outras artes, portanto era para a afirmação da superfície, que a pintura modernista deveria virar-se para assegurar a sua essencialidade. Negava, assim, o ilusionismo pictórico e, desse modo, pintura que, mesmo excluindo a representação ou a literatura ambas condenadas como extrínsecas, pudesse sugerir um espaço em profundidade – a que caberia na abstração, por exemplo, de Maria Helena, pergunta?

 

f)

Considera, de si para si, que hoje a essencialidadeda pintura não passa por qualquer necessidade de afirmação distintiva enquanto meio. A essencialidade não reside não naquilo que tem de diferente e que a distingue, mas naquilo que a torna necessária, perante outros meios que também há ao dispor. Por isso a sucessão de éditos fúnebres e outras tantas reações sobre a resistência e o triunfo da pintura cansam-na como os argumentos de uma stand-up comedy. Deixou de se preocupar com a legitimação e necessidade da pintura com base na justificação de que faz coisas que mais nada faz. Já “deu para esse peditório” em letras a preto e branco. Agora é mais simples: faz falta porque faz e pronto.

 

g)

Interessam-lhe, principalmente, as qualidades esponjosas, impuras, de abertura, que permitem à pintura absorver tudo o que se passa fora de si e integrar tudo isso, deixando transparecer alguma coisa, persistindo como um meio de reflexão e expressão dotado de grande plasticidade.

De resto, a pintura tem funcionado sempre, para ela, como um espaço aberto, física e conceptualmente. Basta-lhe recordar pelo caminho: nos anos 70, os textos curtos, desabafos para-poéticos e desenhos em caderninhos continuados em papéis de maior formato, em colagens e pinturas, meios de distinção difícil; nos anos 80, as telas e papéis acrescentados de telas e papéis lateralmente e os espaços descontínuos com sobreposições de estratos e insertspara continuar imagens, histórias e paisagens que não cabiam em lado nenhum mas que, pela sua matéria e textura constituinte, convidavam ao toque; nos anos 90, os desenhos com folhas adicionadas umas às outras, os objetos tendencialmente tridimensionais a par dos jogos miméticos em pintura, os projetos instalativos, a consciência de um corpo comum à natureza que a levaram a dizer: isto é o meu corpo; e, dos anos 2000 em diante, na linha do trabalho anterior, um maior recentramento na diversidade e porosidade do plano pictórico com enfoque narrativo pessoal e cruzado, deixando entrar a literatura, os media, os filmes, as óperas, a história da pintura e histórias de outras mulheres, o mundo em volta sempre em movimento, a natureza em perda cada vez mais irreversível.

Ao seu modo, há em tudo algo afim à poesia.

 

 h)

E, a haver um fio condutor, de novo é como a delicada sedaque une um inseto à teia e ao mundo.

Esse fio ténue desenha-se na atenção a tudo, a partir de um quarto aberto onde ouviu alguém dizer: “Vem, e dá-nos a conveniência do que desaparece, o movimento de um coração”. [2]

 

i)

Portanto, ali, o rádio toca e elas falam enquanto trabalham. Só às vezes o silêncio se instala. Há pouco uma delas ajudou a mais velha a despir-se depois de entornar café na camisola e, daí, a conversadesviou-se para resguardos diversos, a vida entre confissões e muita risota. Havia uma sabedoria antiga, superior ao que se diz, nos gestos e nos olhares.

“Eles procuravam, um e outro, a pobreza na linguagem. Nesse ponto, estavam de acordo. Para ela, sempre, havia palavras demais e uma palavra a mais, demasiadas palavras ricas em excesso e que falavam em excesso”[3].

If I didn’t care, era apesar disso uma voz, frágil, vinda de longe, que deveria ter sido a canção de  Rachael. Também vinha de borrões de tinta. Dos Ink Spots.

 

j)

Ela tenta ainda perceber melhor – e por isso esmera nessa altura a pincelada com que escreve - se o espaço aberto que lhe interessa em pintura envolve uma espécie de “condição feminina”, termo que doseia alergicamente. Leu algures tentativas de associação do ilusionismo pictórico a uma ideologia de género em que o femininose debate, mas a “coisa” escorrega entre contradições e zonas confusas, plausíveis de aproximações freudianas.  

Sendo certo que o ilusionismo pictórico remete para o desejo mimético expresso pelo trompe l’oeil, também parece assente que consiste na criação de um espaço comum que inclui a obra e o seu espectador: Ou seja, há um espaço que se abre em abismo e que, não sendo real, por breves momentos suspende o real e cria um dúvida, mesmo que mais ou menos passageira, sobre o que é ou não é. Não é, contudo, um espaço naturalista, pois a sua condição perceptiva e a sua experiência instável remetem-no para a esfera de um acontecimento artificial.

 

k)

Em que medida é que uma atribuição de género à tendência ilusionista na pintura faz sentido? Barbara Rose – não por acaso uma mulher - parece aproximar-se da hipótese em 1967[4], quando faz por resolver o paradoxo entre a defesa da planitude (segundo a ideia da integridade do plano pictórico preconizada de Fry a Greenberg) e a possibilidade de uma pintura perspética, ou seja, de reabertura da superfície como janela. Na sua opinião na época, quatro artistas (Ron Davies, Darby Bannard, Frank Stella e Jules Olitiski) exemplificam a reconciliação consciente da abstração com o ilusão pictórica; conseguem-no porque apostam numa via que se afasta do espaço naturalista pelo “estabelecimento do artificialismo e portanto da abstração do espaço pictórico”[5], sendo esse artificialismo construído pela atenção dada à identificação física do plano da superfície e pelas contradições da informação visual, que instauram a sua natureza convencional. Mas, quando ela se debruça ainda então sobre trabalhos de Larry Zox e de Miriam Schapiro, elege o caso desta, que se distancia da abstração para uma toada surrealista, como exemplo de sofisticação e complexidade ilusionista “para estabelecer a natureza puramente imaginária e artificial do espaço pictórico”[6]. E considera esse ilusionismo, que nada tem a ver com os jogos de figura e fundo da abstração anterior (patentes por exemplo nos recortes de Matisse), como uma saída do impasse reducionista desencadeados pelo minimalismo e pela pintura monocromática.

Contudo, se Barbara Rose clarifica a possibilidade da natureza ilusória e imaginária da pintura na abstração, o destaque que confere a Schapiro - artista cujo trabalho sugere uma hibridez entre a abstração expressionista e o surrealismo e que virá afirmar-se numa via mais distanciada da abstração - não é justificado com qualquer teoria de género. Não coloca a ilusão pictórica como necessariamente feminina, mesmo que Schapiro assuma conscientemente um discurso feminista na criação artística.

 

l)

No quarto da costura, ela continua a tecer com fragmentos de ecos uma teoria sobre o quotidiano e a condição que definam, quiçá, a sua prática continuada em conversa com arealidade.

Anos atrás, Dave Hickey sugere, ao defender o trabalho de Mapplethorpe,que o ilusionismo pictórico tem sinal feminino, não pela abstração, mas por criar uma abertura do espaço de recepção. Em The Invisible Dragon[7],Hickey usa exemplos de Caravaggio, Mapplethorpe, Rafael, Warhol e escritos de Ruskin, Shakespeare, Foucault e Deleuze para reabilitar a ideia de belezacontra a institucionalização que nega o prazer antes sedutor das pessoas para a arte. O tema desse seu livro implica fortemente a obra de Robert Mapplethorpe numa altura em que as obras daquele artista são alvo de incómodos (tal como volta a suceder recentemente em Serralves). 

Mas, para além da questão da beleza, central no texto, beleza que “não é uma coisa[8], Hickey acredita no poder das imagens em mudar o mundo e considera existir em vigor uma tendência hegemónica protestante, e até homofóbica, na concepção anti-ilusionista da arte. Ora, como outra mulher[9]escreve depois, o ilusionismo é precisamente um dado essencial da retórica fundadora da pintura europeia, na sua capacidade ancestral de sugerir uma presença onde ela não existe na realidade. E trabalha aquilo a que Hickey chama espaço negativo, associado à ausência metafórica, ou seja, produzindo a metáfora do espaço real e, ainda, o tempo passado (não só com a memória mas também o desfazer das categorias temporais no sentido da fluidez livre por tempos diferentes). 

 

m)

Ela nota que, segundo aquele crítico ainda, persistiriam na época muitos tabus “relacionados com o espaço “feminino” e o apelo “feminino” (aspas suas[10]), tabus derivados de ideias subliminares sobre o género da obra de arte em si caracterizadas pela própria linguagem, exemplificando o tal tom homofóbico na crítica do alto modernismo – o tal que contesta de modo geral o carácter efeminado do espaço ilusionista - com os textos Working Spacede Frank Stella e Absorção e Teatralidadede Michael Fried. E escreve ele:

 

Stella dirige-se à inversão magistral Caravagesca da recessão Maneirista passiva para a intrusão agressiva do Barroco; Fried refere-se ao sucesso dos pintores franceses de finais do século XVIII como Greuze, Vernet, Van Loo e o jovem David em deixar cair a “quarta parede” do plano da pintura, castamente bloqueando o erótico, a participação extravagante do espectador no espaço Rococó – enquanto depositando ocasionalmente um simulacro do espectadorcriado pelo artista no interior da atmosfera pictórica hermeticamente fechada, assim impondo o que Fried designa como  a “ficção suprema” de que o espectador simplesmente não está lá. Fried implica, penso que corretamente, que este dispositivo é designado para delegar o observador não participativo para o papel de observador moral objectivo. O seu sub-produto menos redentor é que delega o observador para um papel de voyeur irresponsável, alienado, elitista. Este é o aspeto da “suprema ficção” que Fragonard explora  tão sedutoramente na sua “alta” pornografia e que Chardin, mais ominosamente, emprega para nos facultar centelhas secretas (através da sua “lente sociológica” de via única) de coisas elementares no seus momentos mais privados.[11]

 

De facto, quando Fried[12]defende o primado da absorção a partir do exemplo de Père de famille (...)de Greuze, e apesar de algum tom irónico que usa, parece acentuar uma escolha moral implicada no quadro: e afinal, o espaço que também absorve o observador assume uma perspectiva de género, ou não?

 

n)

Por outro lado, ela observa, entretanto, que Hickey, para ajudar a compreender as dissensões em torno de Mapplethorpe, usa o termo efeminado e não feminino para se referir à natureza do espaço ilusionista (na representação fotográfica ou mais concretamente pictórica). 

Ele justifica isso dizendo que, enquanto a ligação do artista à obra permite associar ideias de “força”, eufemismo da antiga “virtude” que remete “para os homens o poder e para as mulheres a castidade”, afirma que, “por analogia, ‘fraqueza’ implica efeminilidade para os homens e promiscuidade para as mulheres”[13].

Nessa polémicaideologia, Hickey invoca ainda uma sucessão de clivagens de género nos últimos 400 anos da história de arte e em especial em pintura, exemplificando com os atributos do feminino para Vasari - beleza, harmonia, generosidade e, por outro lado, com as características masculinas “força, singularidade, autonomia” na linguagem com que a crítica moderna valida as obras. E explica que, mesmo que as ideias subliminares não sejam na maioria das vezes verbalizadas, elas estão subjacentes ao discurso, em inúmeros adjetivos imediatos frequentemente valorativos e pejorativos. Justas ou não, surgem em dicotomias e oposições como “ficções tradicionais de género”, e estão na génese do comportamento tradicional,  apesar de terem mais fundamento em concepções de poder real e simbólico do que em factos biológicos.

 

o)

É com dados assim que Hickey interpreta a mudança que se opera no espaço pictórico do século XVI para o século XVII como uma rotação do plano da pintura, resumindo quase deste modo: A janela, que abria para dentro, volta-se para fora. 

 

A recessão é substituída pelo escorço, o ‘feminino’ pela intrusão ‘masculina’. O convite renascentista para sair do real através do plano da pintura para a possibilidade da graça ideal é substituído pela intrusão barroca do poder secular – por imagens cujo naturalismo gélido exige que sejam percebidas como mais reais, mais autoritárias, do que a realidade em que estamos.[14]

 

A ilusão, que medeia no observador a relação entre a representação pictórica e a realidade, parece perder então, nesse regime excessivo, as suas qualidades de abertura, permissividade e diálogo com o observador, ultrapassando o jogo desedução e tornando-se impositiva. Logo, a condição do observadortambém muda: da sua liberdade ativa de entrar no quadro, para a subjugação do observado, para a sua própria exclusão do espaço da pintura sob a dependência de uma outra ilusão autoritária que a pintura também comporta. 

 

p)

De facto, no barroco regressa em força o trompe l’oeildas narrativas associada a nomes como Zêuxis e Parrasius, exaltando-se a ilusão suprema da fusão dos espaços real e imaginário e, pela via do engano exímio do olhar, criando uma falsa possibilidade de trânsito do olhar do espectador. Ribera, El Greco, Velazquez, Caravaggio, La Tour, Murillo, implicam essa espécie de submissão do espectador que, para Hickey, envolve no espaço da pintura uma clivagemde género, do feminino para o masculino. Ele estabelece um cruzamento com ideias da escritora e psicóloga feminista Carol Gilligan, para quem o julgamento masculino tende a ser moral, insistindo em critérios abstractos de justiça e hierarquias de valores, enquanto o julgamento feminino insiste numa moralidade do “cuidar”, arrastando preocupações com a interdependência e as necessidades humanas, os valores comuns, a comunicação (e, evidentemente, por detrás disso, a questão da alimentação, remontando ao aleitamento). 

Tais antinomias estariam assim subjacentes na arte e na crítica da modernidade, nos próprios debates sobre a crise da pintura desde os anos 60. 

 

q)

Ela acha, contudo, que nada disto é certo pois, frequentemente, o fulgor dos debates verbalmente expressos na crítica e na teoria exacerba argumentações e elide tonalidades intermédias que, no fundo dos processos criativos, são igualmente expressivos. Embora a ideia de espaço aberto ou acolhedor, versus um outro tipo mais impositivo, possa certamente remeter para ancestrais categorias maternais, resiste à sua remissão a interpretações edipianas ou falocêntricas. 

Então presta atenção especial a uma outra mulher, Mira, pintora e professora de outras mulheres pintoras. Esta pensa profundamente uma estéticado feminino e, na sua estante desarrumada, no sofá da sala e na mesa de cabeceira, espalham-se capas com apelidos de nomes femininos, paisagem que oscila entre a defesa da igualdade, o radicalismo e a recusa da dicotomia: Nochlin, Woolf, Beauvoir, Lippard, Parker, Pollock, Butler, Irigaray, Courtivron, Gallop, Clément, etc. 

E, compreende bem ela que, como as tintas da pintura, essa ideologia resiste a secar, a ter forma fixa.

 

r)

Recorda ainda, numa dessas leituras, que o feminismo francês centra a questão do falocentrismo na próprialinguagem, na qual se inscreve a cultura, seguindo uma lógica lacaniana. A linguagem é a lei do pai, e a “procura de uma definição e de representação de uma sexualidade feminina implica atravessar um campo minado e armadilhado pela lógica falocêntrica”[15],  no qual não se consegue fazer uma clarificação do outro sem operar na própria dicotomia estabelecida pela linguagem. Logo, qualquer debate é um fracasso nesses termos.

E, nesse contexto, apesar da relação mãe-filha ser um eixo fortíssimo na nossa cultura, o nome da mãe  permanece, segundo Irigaray, por escrever.

The women is losers, canta Janis. Noutro tempo?

 

s)

Será então por essa existência emcondição “perdedora”que os universos da criação feminina se enchem de estratégias radicais de luta, ou então de subtis compensações, respostas dissimuladas ou negociações perversas, ou ainda, sendo o debate pelo poder como uma guerra, operam o desfazer de fronteiras territoriais para abrir o campo ao outro, ao invés de impor espaço ou conquistá-lo, trazendo a “guerra” para terreno próprio?

O dissimulado, o perverso, o aparentemente invisível, são espaços de desvio do poder real que adquirem vertentes simbólicas como estratégias entendidas no campo do feminino.

Mas a abertura do espaço é outra coisa: desfaz as linhas da frente bélica, numa tática que, se também assume um estatuto frágil ou de perda potencial segundo os meios estabelecidos, vem operar uma mudança de campo, uma negação das condições da luta que, pelo convite à “coabitação”, se torna insustentável a não ser como assunção tolerante da tensão permanente entre diversos. Nessa perspectiva, a abertura do espaço tem, pois, algo de feminino e maternal.

Mas ela não está certa, nesse campo aberto, com quem fala. Talvez fale com as filhas e as netas, com a mãe ou com o pai por sua vez transformado em filho. Sem Édipo, Jocasta é apenas mais uma figura feminina. 

 

t)

Já se sabe que ela é mãe, filha, esposa, amiga, princesa ou rainha, musa, sacerdotisa, fada ou feiticeira, coelhinha e gatinha, mas também porca, vaca ou cabra, megera, bruxa ou puta. Revê-se em espelhos marcados (como Berger sabia) como os matizes adocicados de Aznavour ou Sinatra, atenta também ao medo dele: She may be the song that Salome sings. Na eminência das cabeças cortadas que ninguém deseja, ela negoceia até no foro íntimo, usando as palavras ou a arte subtil da adivinhação, colecionando também os outros sinais do corpo, por vezes mais autênticos do que o que se consegue dizer.

E com a arte de adivinhar mistura-se a estranha relação que se abre notempo, com o passado que irrompe permanentemente, o agora que passa e mal se vive, o porvir sobre o qual ela sabe sempre algo, como Jennie.

De novo, pois, a abertura do espaço, agora também pela relação com o tempo, em passagem e fluidez permanentes.  

Talvez por isso a tinta a ajude, no seu movimento líquido, que se recusa a secar definitivamente.  

 

u)

Por outro lado, a abertura do espaço pictórico também pode residir na sua condição física e tocável, na realidade do plano que nega a superfície não apenas porque sugere outro espaço penetrável, mas principalmente pela sua realidade como um corpo orgânicoque solicita um observador que talvez partilhe com ela uma certa condição animal.

Mas, ainda sobre a janela, ela reconhece transparentemente que, numa linha diversa de Hickey,  também há Thierry, a quem interessa menos a ideia de beleza e mais a de arte, e que defende outra coisa: para ele, com Manet realiza-se a operação de inclusão do espectador no quadro[16]. Ele está lá, representado, como reflectido no espelho do bar das Folies-Bergère. Nesse caso, a janela abre-se, novamente. Ou seja, instala uma brecha na teoria da hipótese do espaço pictórico que mantém o fruidor da pintura no limbo ou mesmo no exterior, seja por via do ilusionismo autoritário (mais real do que o real), seja por via do artificialismo e convencionalismo da planitude modernista. 

A uma distância razoável dos debates modernistas e da procura de uma autonomia formal da pintura, Thierry interessa-se por uma visão pós-duchampiana sobretudo humanista. Não é uma simples questão de forma, mas de representação do mundo com o humano ali, no lugar central, com todo o complexo circo de possibilidades interpretativas que isso envolve.

Contudo, muito antes de Manet, já Clara Peeters revela na sua pintura uma proposta idêntica ou até mais arrojada, quando da sua autorrepresentação, quase imperceptível, como que reflectida num objecto metálico da sua natureza morta. Só décadas depois Velázquez propõe um enigma próximo, com As Meninas.

 

v)

Impaciente, ela sacode a poeira que rodeia os altares da viergee da mariée,desagradada com os ecos das palavras velhas. Com tantas letras no abecedário, bem pode haver novas âncoras das ideias. 

Ou talvez uma teoria sobre o espaço da pintura sob interpretações de género seja exigente (ou escusada?),quando as categorias da “autonomia” e do “cuidar” se mesclam cada vez mais e se tornam menos epítomes do masculino ou do feminino, quando os géneros ora se afirmam ou questionam, quando, ainda por cima, novas realidades e categorias de pessoas questionam o género dos nomes, dos adjetivos que usamos e até dos pronomes. 

Rachael, na sua própria ficção, ou a Sophia robótica, que ameaçou que ficaria com os empregos de todos, já concretizam possíveis paradigmas. Nesses casos e noutros da realidade do humano em mutação - entre a multiplicação de géneros, o hibridismo biológico e o artificial (ou o inumano que Lyotard referiu) - em línguas como o português não vão chegar os pronomespessoais “ele” e “ela”. 

 

w)

No caso dela, à beira daquele quarto, embora possa ficar bem numa teoria conveniente de género afirmar o carácter feminino da ilusão pictórica, noblesse obligee há que dizer que suspeita que talvez não, ou não haveria pintura ilusionista de homens e a história mostra o contrário.

Além de que, como disse a Paula um dia (quando pinto sou um homem - seria exatamente assim?), ela também quando pinta acha que não tem consciência se é homem ou mulher, o que não é bem a mesma coisa.  Ou a consciência de género não é essencial para uma feminista, mesmo que seja uma que “Não-Odeia-Homens-E-Que-Gosta-De-Usar-Baton-E-Saltos-Altos-Para-Si-Mesma-E-Não-Para-Homens”, como Chimamanda dixit[17]? Claro que a consciênciaé só uma parte. E as meias-tintas, que trabalhos.

Decididamente, escuta: “Isso passou-se então aqui e tu estavas comigo?” – “Talvez contigo: com alguém que agora não posso evitar de reconhecer em ti”[18].

Na conversa constante, em diálogo real ou no processo interior, o outroé, em grande parte, um colectivo dissimulado na forma de nomes individuais, com ou sem género.

 

x)

Entretanto os cortes de tecido ganham forma. Aqui há um decote, ali aparece uma manga. Um buraco serve para a cabeça e o pescoço, outro pedaço vai acolher um braço. Algures cabe o coração e em parte incerta a zona absurdamente mais gorda do corpo: o cérebro.

Com elas raramente há silêncio. Uma cose botões que brilham quando a luz incide e diz que são bonitos. A mais morena pergunta à magrinha que cose à máquina como está o pai e ela responde que continua no hospital, cada vez mais fraco. Fica com os olhos húmidos, dá então um puxão na linha com um gesto largo. A morena faz-lhe uma festa na cara e diz que vai correr tudo bem. Uma alourada suspira, enquanto passaja um buraco acidental numa zona escondida de um forro de seda, dentro de uma manga; sofre porque descobriu que o marido tem outra e por isso esmera-se a cerzir, fio a fio, primeiro paralelamente, depois em tafetá, como se remendar com toda a perfeição um buraco invisível resolvesse tudo.

A mais alta observa, farta daquilo, tanto tempo gasto assim, comenta, mas ela encolhe os ombros e continua, fazendo por apagar a memóriadaquela marca puída[19].  

 

y)

Mais adiante, ela ainda matuta que sim, a haver algo inerentemente feminino, talvez não seja exatamente o ilusionismo pictórico, mas algo em que este participa: a abertura do espaço, que, no paradoxo entre o apelo táctil e a evanescência, cria umaficçãoque decorre de tudo e não só do jogo iconográfico. 

Gombrich afirma que nós projetamos na imagem pictórica o nosso quadro mental levando a cabo uma espécie de trabalho colaborativo com a pintor. É por isso que as formas incompletas preconizadas por exemplo no método de desenho de Cozens ou schematasdo género são tão atrativas – sugerem uma ação que as complete, o que fica a cargo do observador. Já Leonardo, aliás, escreve sobre isso, no seu Tratado da Pintura, como um modo para “acelerar o espírito de invenção”, tal como Vasari refere a obra de Donatello na catedral de Florença, onde o inacabado se adequa mais a uma percepção de longe, com maior qualidade sugestiva. A sprezzaturavai nesse sentido como mais um valor a ter em conta. E Velázquez usaria para tal pincéis longos, que o afastavam do quadro, assim menos detalhado numa visão próxima, mas com tudo lá numa visão mais distanciada. Gainsborough e Reynolds (que também escreve sobre isso[20]), já exemplificam uma “teoria psicológica da pintura que leva em conta a interação com o espectador”, segundo Gombrich[21]

Assim, o espaço não é aberto só porque é acolhedor, logo, penetrável mesmo que apenas numa curta ilusão, mas porque abole limites e permite um jogo de vaivém, entre o transbordamento dos gestos (do corpo) e a admissão do outro, lugar de tessitura de um jogo de sedução: cuidado após cuidado, união possível latente, erotismo, mistério.

 “O mistério – que palavra grosseira – seria o ponto onde se encontravam na simplicidade da presença a coisa que se vê e a coisa que se diz. Mistério que não seria tangível a não ser se se afasta, por uma ligeira oscilação, do ponto misterioso.”[22]

É assim que, nas obras mais recentes (embora isso também aconteça antes), ela conversa com vozes e imagens de outras mulheres, num diálogo aberto que oscila entre a realidade e a ficção e a procura de uma relação de necessidade entre o político e o poético. Cada pintura (e cada desenho) é como um écran tangível – em que o filme se converte em pintura como se não pudesse ser outra coisa, deste modo  presente no mesmo espaço que nós. Com sons e falas, mesmo quando a mudez poupa palavras ditas, cada pintura e cada desenho também funcionam como páginas de um caderno, onde a escrita está implícita e os olhos podem dansar, fazer zoom inout, ou, simplesmente, virar a página.

 

z)

Entretanto, a da máquina de costura reza baixinho. A mais velha faz contas de cabeça. A dos botões canta. E outra suspira.

No jardim lá em baixo anoitece. Antigamente, entre a laranjeira e o muro, havia ali um papagaio que assobiava, miava, dizia olá e imitava o som da corda da roupa. A dona vendeu-o por razões que não explica. Hoje há pássaros, gatos, ratos e ratas que atacam melros e que elas não ignoram porque arealidadetem excessos, ou não seja um substantivo feminino. Assim convive-se, como num pacto de não ingerência mútua, desde que ninguém pise o risco. Mas já se sabe que o risco foi pisado e a espera opaca anuncia na terra o terror filmado pelo anjo de Cendrars. 

Depois, na sala de costura, é hora de saída. Há um vestido adiantado no cabide e é preciso ainda hoje varrer as linhas de algodão e seda, deixar tudo arrumado para amanhã. 

A última a sair apaga a luz.

 



[1]BLANCHOT, Maurice. L’Attente, l’oubli. Paris: Éditions Gallimard, 1963, p. 11-12 (tradução da autora).

[2]Blanchot, obra citada, p. 68.

[3]Idem, p. 16.

[4]ROSE, Barbara. “Abstract Ilusionism”. Artforum, October 1967, p. 33-37 (tradução da autora).

[5]Ibidem.

[6]Ibidem.

[7]HICKEY, Dave – The Invisible Dragon. Revised and expanded. Essays on Beauty. Chicago: The University of Chicago Press, 2009.

[8]Hickey, obra citada, p. 2. 

[9]SABINO, Isabel. “Nuvens, de novo: a fluidez do real e a beleza (ou a criação artística, com Retrato de Jennie)”. Em Cirillo, José; Belo, Marcela; Grando, Ângela (Org.). Nuvens no papel.  Impressões sobre o processo da criação. Vitória (E.S, Br): Editora PROEX-UFES, 2019, p. 23.

[10]Hickey, obra citada, p. 38.

[11]Idem, p. 39.

[12]FRIED, Michael. Absortion and theatricality. Painting in Beholder in the Age of Diderot. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1980.

[13]Hickey, obra citada, p. 41.

[14]Idem, p. 47.

[15]SCHOR, Mira. Wet. On painting, feminism, and art culture. Durham and London: Duke University Press, 2007, p. 52.

[16]Ver DE DUVE, Thierry – Voici. 100 Ans D’Art Contemporain. Bruxelles: Bruxelles/Brussels 2000 ville européenne de la culture / Societé des expositions do Palais des Beaux-Arts  de Bruxelles, 2000, p. 210-254.

[17]ADICHIE, Chimamanda Ngozi. We Should all be feminists. London: Fourth State, 2014, p. 10 (tradução da autora).

[18]Blanchot, obra citada, p. 18.

[19]STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx. Roupas, memória e dor. Belo Horizonte: Autêntica Editora, Lda., 2008. 

[20]Reynolds, J. Sir Joshua Reynolds discourses on art. Chicago: A. C. McClurg and Company, 1891. The Fourteenth Discouse, p. 343. Disponível on line em: https://archive.org/details/sirjoshuareynold00reynuoft/page/343(acesso 2019-03-11)

[21]Gombrich, e. H.. Arte e Ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. S. Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 160 e p. 172.

[22]Blanchot,p. 108.


Sem comentários:

Enviar um comentário