segunda-feira, 26 de abril de 2021

 ELA, 2019 - texto de Carlos Vidal


DUALIDADES, UNIDADE: LABOR DE EXPERIÊNCIA E EQUAÇÃO (DO VISÍVEL)

Sobre a pintura de ISABEL SABINO

 

 

Carlos Vidal

 

 

1.

Pensemos ou descrevamos em modo de inventário possível (que, no fundo, é impossível, pois a pintura também se produz/reproduz a si mesma, ela faz e refaz a sua realidade substancial e insubstancial[1]para além de inventários), portanto, em forma de inventário, para já não-significacional, pensemos nalguns dos aspectos físicos desta pintura que se nos adentrana percepção; isto é, na visão e no olhar flagrantemente atingidos; esta é uma pintura que ganha substância logo desde o seu surgimento em colectivas da segunda metade dos anos 70 (O papel como suporte, SNBA, 1977), e mais notoriamente desde 1985, ano das duas primeiras individuais da sua autora: na Pousada de Palmela e Viagem, na SNBA. 

     Mas… – interrompendo-me – já retomaremos a questão do “inventário” das fisicalidades e das matérias salientes nestas obras… Falámos igualmente de uma pintura que se adentrava, desde a sua, digamos, revelação pública, na percepção, olhar e visão. Deste modo, alterando um pouco a estrutura inicial deste texto, vejamos entretanto a forma deste “adentrar-se” – comecemos pois pelo que a visão constrói diante do que a pintura ela própria também constrói, passando seguidamente para o “inventário” das suas matérias (seja, a “coisa” física). 

     Ora, diria que se adentrao que se impõe, e impõe-se, ou tanto mais se impõe, aquilo que é fruto de cruzamentos de linguagens (sobretudo visuais, mas não somente): poesia, literatura, fotografia, viagens, fruto do vivido sem testemunho e intuído porque imaginado, mas também de momentos biográficos testemunhados em vários cadernos (e ainda namemória, o que talvez “pese” mais, pois a ideia vai além do registo – apesar dos Iluministas não o terem percebido, pelo menos não o perceberam quando Voltaire definia “ideia” como uma “imagem” na mente). As viagens, ou a série Viagemde 1985 em detalhe, demonstram que esta pintura sempre se deu bem com a própriapintura(e ei-la aqui testemunhada, esta boa relação, numa pintura partindo de inúmeras e nem sempre óbvias referências cinematográficas e literárias, ou naturais como as estações do ano e outros fenómenos); ou seja, esta pintura sempre buscou na pinturaa sua razão de ser “corpo”. O que não significa que ela não se reinventasse – não se reinvente – permanentemente pois, como disse, a pintura tanto é substancial quanto insubstancial, algo que, à maneira de Descartes, são formas de produção de verdade (o cogitoé claro, a imaginação também) e, neste caso, verdades pictóricas, simplifiquemos.

     Portanto, aqui, nesta “pintura cruzada”, o espectador tem de construir o seu lugar, nestas imagens o espectador constrói o “mundo” das suas imagens/linguagens pela ou na visão, mais do que pela matéria ou respectivo plano háptico (que também está presente). Por isso a autora escreve, no texto para a exposição São rosas, meu(2011), nada do que vemos corresponde a “sítio nenhum”[2]. Logo, o que vemos são imagens verdadeiras, mas de um “verdadeiro” totalmente construído, essência do cogitoque faremos abeirar-se da pintura. 

     Reversivelmente, estas imagens dizem-nos ou definem-nos o que é a visão. Isabel Sabino compreende esta dualidade perfeitamente, tanto na sua pintura quanto no seu texto (e muita atenção aos títulos e ao modo como se entretecem com o pictórico e o “produzem”). Ela, independentemente das matérias físicas, faz (a) pintura, mas sabe que esta está tanto no suporte do quadro quando no próprio mundo. Tal como o Olhar (Sartre) é o mundo que para nós se dirige. Isabel Sabino escreve: “tudo pode ser uma pintura”[3]. O que quer dizer que ela está no mundo junto ao Olhar do mundo (vemos, mas sobretudo somos vistos). E o que é que isto quer dizer? Que a pintura está no mundo, que é um seu equivalente, juntos influenciando-se congruentemente. E que, conforme vejo, o que vejo, como vejo (o Olhar), habita o mesmo mundo (só há um mundo, apesar de haver várias realidades, diria Maria Gabriela Llansol). Tudo está nessa amálgama de imagens: Olhar e mundo têm de ser congruentes: dizer que diante de mim estão imagens e não representações significa que diante de mim está aquilo que vê (retina, alma, consciência…) e o que é para ser visto. De outro modo. Nos anos mais recentes (e pensemos na última individual da autora, Four Seasons, Please!,(Lisboa, Gal. Arte Periférica, 2019) o cinema serve de mote (sempre serviu, e cada vez mais): William Dieterle, Victor Erice (cineasta que já procurara uma luz “perfeita” para a pintura filmando essa busca com Antonio López) ou Chris Marker, e ainda as estações do ano, que originam nas pinturas composições peculiares, divisões e velaturas, ou borrões onde se “refugiam” as figuras nos seus gestos basicamente quotidianos (ou “demasiadamente humanos”). Cada tela é assim duplamente visual (filme+pintura). 

     Ora, quanto mais reais, e já Stanley Cavell (The World Viewed)[4]nos falava do cinema como máquina de registo que podia ser passiva se não intervencionada, quanto mais reais são os meios mais nos fazem ter uma leitura subjectivada desse mesmo, nosso, real. É através das figurações ou invenções do real que entendemos o real – claro que não é através do que fica gravado na concavidade retiniana (pictura, em Kepler): nós não somos uma câmara escura. Pelo contrário, digamos diferentemente, nós é que a inventámos e aos seus limites: se esta regista (a sua película sensível, tão cara a Descartes como a Vermeer), nós especulamos: esta é a diferença entre a “visão empírica” e a “visão especulativa”. E “especulativa” é a nossa, humana e artística. Resumindo, o que vemos ensina-nos a ver. Faz-nos ver. Por isso é que Sartre nos diz que o mundo nos olha, a nós que também vemos e olhamos. Porque ele sabe que vai ser olhado e o olhar não pode habitar outro lugar (o mundo, e daí vem). Somos vistos, sim, mas igualmente vemos a partir do que edificámos para ver: a fotografia, a pintura e o filme são a forma como vemos e atribuímos significado ao mundo. Vejo e penso no que vejo a partir dos olhos de Kiarostami, Antonioni, Germaine Dulac ou dos relatos e viagens oculares no espaço-tempo de Chris Marker… Esta é a opção de Isabel Sabino, julgo poder afirmá-lo. 

 

2.

Há uma outra via, a de Marx ou Feuerbach que culmina em Guy Debord, mas não no puramente “dado” fenomenológico. Segundo Debord eu não vejo, quem vê é a mercadoria que eu sou (o que também é uma realidade incontestável do tardo-capitalismo) – mas, como ver é das actividades mais livres e livremente construtivas, eu posso dizer que vejo por mim, através de mim (pense-se nos títulos mais bizarros e marcantes de Isabel Sabino, que também integram a sua forma de ver) e que vejo através do que escolho como véu/filtro, sobretudo os meus filmes e os meus livros. Portanto, há aqui um ligeiro afastamento de Sartre e de Debord, para quem – no primeiro caso – sou apenas olhado e nesse momento me conheço, ou então – no segundo autor – nada vejo, mas tenho a imagem, mais forte do que eu a ligar-me aos outros. Note-se que, para Debord, o “espectáculo” não é o excesso de imagens, mas é antes a força que têm as imagens em estabelecer relações entre pessoas.

     Em Isabel Sabino, o domínio dos materiais, ou matérias (materiais actuantes e suportes) é de grande virtuosismo mas a sua pintura nunca prima pelo “espectáculo”, como disse. À partida, tudo aqui, a começar pelos títulos, parece irónico. Nesse sentido, a ironia espectaculariza ou espectaculariza-se. Mas eu retiro isto tudo da ironia e, a partir de Huizinga, coloco esta pintura no universo do jogo, do lúdico, sendo a arte a criação-resultado do ludens[5]e não do sapiens(Huizinga relido por Bataille). Muito menos isto é fruto da mímica do palhaço (funcional, em Huizinga). Cómica ou risível. Nem tão pouco a seriedade cinematográfica pode reduzir esta pintura a si, por ser dela um dos pontos de partida. 

     Tal como o jogo ultrapassa a realidade material física (redutível ao sentido), também esta pintura ultrapassa a realidade ficcionada do cinema, ou das suas películas que registam, de onde parte (assumidamente). Mas o jogo (Huizinga) necessita de “jogadores”, tal como esta pintura necessita de se cruzar com a literatura, o cinema e a própria pintura e sua história – tudo para encontrar a “significação primária” da pintura. Como é “jogo” (ludens, seguindo ainda Huizinga), ela convoca várias entidades e situações (e aqui é premente a consulta do catálogo para a exposição Tell me Lies,Galeria Novo Século, Lisboa, 2002, onde a autora produz um catálogo-revista que mistura referências ao duche matinal, a teoria do kitsch de Hermann Broch com a irrealidade inventada por Umberto Eco e os protocolos académicos), convocando-as para encontrar essa “significação primária” da pintura (uma das pinturas intitula-se, não por acaso, A artista explica) entre moda, estilos, desvarios e seminários, como em Baudelaire (moda, efémero e paixão), no seu “aqui e agora” do Pintor da Vida Moderna, ou, passemos ao plano prático, nas rápidas incisões no gesso-base e tinta acrílica: a pintura nasce do monocromo, obviamente – por isso Robert Ryman gostava da expressão “used painting” (a única possível?) para os seus monocromos brancos. Portanto, vinda do mundo, que é pintura (Isabel Sabino), ela já vem “meio” feita, usada. Por isso, a autora, nas obras de princípios de 2000, usa o acrílico como base pois tem de o intervencionar rapidamente (a sua secagem é rápida) e aí desfazer a forma figurativa, mais do que a edificar/apresentar. Há nesta pintura uma outra dualidade, ou várias dualidades, mas, apesar de ser o cinema que duplica mais imediatamente os mundos, a autora, como pintora (crente na pintura), faz do cinema uma série de factos que na pintura se perdem como pictóricos, gestuais, cromáticos, compositivos……. Ela duplica mundos além do cinema e faz deste mundo um mito. O Quotidiano!

     Ou seja, os seus mitos vêm daqui e sobre isto ela se refere. Escreve no catálogo de São rosas, meu: “já que tem que haver alguém, então que surja um ele, numa imagem com erros de transmissão, micro néons a piscar, e diga assim qualquer coisa como: - Vai ser preciso mandar arranjar o telhado e tapar as fendas, dar uma demão de tinta. O limoeiro este ano está maluco, também não admira com o que choveu, há limões até a cair no terreno do vizinho. E apareceram flores espantosas no meio das favas e das couves dos quintais, na net diz que são fungos mas parece que há um vírus novo que cria erros e este talvez seja um deles, senão vai ser preciso arrancar tudo. § De resto, não percebo o que se passa, mas é preciso cuidado com as flores. § Só que não há tempo agora, a ventoinha está a fazer um barulho esquisito, há que ver se. Voltar a ligar os cabos e substituir as lâmpadas fundidas. Arranjar folha de ouro para as molduras dos espelhos. § Vidros para a estufa (…)“. Ora os mitos desta pintura são estes, e estes, aparentemente triviais mas criados, deixam de o ser, passam à insubstancialidade: enquanto manifestos na pintura, são tão importantes ou irreais, duplos, como a tempestade de Key Largo(John Huston), as paisagens apocalípticas de Deserto Vermelho(Antonioni) ou o rosto melancólico da replicante Rachael de Blade Runner(Scott). Destas opções se deduz que aqui não se trata de operar no território de uma “pintura-pintura” (óptica, plana, à maneira de Greenberg), mas antes de uma pintura-mundo, porque, como atrás afirmado, o mundo é pintura.

 

3.

E voltamos enfim ao início do meu texto. Onde referia a importância da descrição ou inventário (possível e impossível, pois a pintura a tudo acrescenta algo) das matérias aqui empregues, usadas (Ryman); inventário de algumas realidades físicas que fazem alguns destes quadros (anos 70-80) parecerem “fugir” da parede e da sua bidimensionalidade. Entretanto, se o materismo, a relativizar contudo, extravasa a bidimensionalidade (flatness), a instalação supera a bidimensão e a tridimensionalidde, superando as disciplinas e seus atributos conhecidos – pintura, escultura ou fotografia e respectivas “fronteiras”. Na instalação nem sequer há hierarquias entre espectador e autor: o primeiro, receptor, é aspirado para a obra e, nela, conquista parte da sua “autoria”. Na instalação três fenómenos convergem: dissolvem-se, se é que não desaparecem mesmo, as disciplinas; desaparece a relação autor/espectador individualizada (passa a imersiva/participativa) e desaparece o contexto do “cubo branco” que não admitia ruído nem a presença significacional do espaço exterior (Brian O’Doherty).[6]Antes de falarmos dos materiais inéditos procurados pela autora, falemos um pouco de instalações, nem pintura nem escultura, mas arte do espaço completo e psicológico (tudo podendo culminar na “total installation” de Kabakov)[7]. Ninguém contempla uma instalação, buscamo-la intersticialmente e aí passamos a habitar, involuntariamente, o seu interior: somos instalação e seus co-autores, sempre. É uma nova etapa da matéria plástica que passa à condição de espaço multidimensional. 

     Como há uma relação entre instalação no seu “primeiro grau”, que é a obra realizada com objectos (as estantes de Haim Steinbach, por exemplo), e alguma pintura matérica em “fuga” do parietalismo, valeria a pena referir algumas das instalações da autora, para, de seguida, referir as suas matérias que levam, diria utopicamente, a pintura um pouco além da parede, sem ser tomada por “arte matérica” (ou informalismo; mas, note-se, já o “informe” de Bataille não andaria aqui longe…).

     Então, recentemente, Isabel Sabino realizou duas notáveis instalações: Ainda -D’Après Nuno Gonçalves (Museu Nacional de arte Antiga, 2011) e A Menina (não) fica em casa (Museu Militar, Lisboa, 2016). No primeiro caso, Sabino rebate, não só simbolicamente, os Painéisdo MNAA para a horizontal – não exactamente a horizontal perseguida por Pollock que depois foi perseguida por Warhol –, mas uma horizontalidade necessária e de ressonância política: vemos uma fila, no chão, de seis caixas ligadas, cada uma “apoiada” num espelho fino; cada caixa reproduz ou sinaliza, à escala, um dos Painéis. Cinco delas estão abertas e contêm hóstias, aqui símbolo da expansão da fé das “descobertas”. A obra fala-nos dos Painéis e, simultaneamente, apresenta-se como mundo escultórico autónomo. Obra simbólica, sim, ou por isso mesmo, quando alude à transubstanciação; aí ela consegue falar-nos da transubstanciação religiosa e de uma outra transubstanciação, a da obra de arte e da mutabilidade das suas significações, fazendo mesmo arte e religião tactearem-se. A Menina (não) fica em casa é uma obra potencial ou naturalmente politizada. Instalada numa das salas da Grande Guerra (revestida das famosas pinturas de Sousa Lopes), a instalação é constituída por uma trincheira e vitrinas de pinturas vermelhas, retratando o que a autora denomina de “Mulheres de Armas” (mulheres além do seu tempo estreito, portanto, como Maria Lamas), combatentes num lugar absolutamente forte, digamos, como os homens da “frente” (vanguardas), retratos de operárias que, no fundo, mantinham mundos vivos, e ainda guerrilheiras que o transformavam (ou transformam e intentam transformar).

     Deste modo, a instalação tende a indisciplinar a pintura, como a escultura, e algum materismo da autora (pelo menos até à segunda metade dos 90) pode agora ser enumerado: inúmeras vezes, a tela cede o seu lugar a tecidos de algodão ou chita (a pintura, a sua caligrafia, colide desta feita com padrões pré-existentes), a pedaços de gesso, aparite ou linóleo; óleos e acrílicos (este, o material actuante quase sempre escolhido) coexistem e misturam-se no visível plano(flatou uma flatnesspouco disciplinada, mas que se agarra ao suporte mesmo quando em nítido relevo) em matizada espacialidade com gessos não escultóricos e intervencionados como suportes, com traçados, linhas, “riscados” que se tornam parte integrante de uma caligrafia pictórica tendencialmente abstracta; vidros, zincos, argamassas, areias e colas, costuras do suporte recebendo sacos transparentes com enigmáticos objectos (ou pedras sem enigma), pequenos sacos-recipientes de interior desconhecido, passeando-se a autora por entre títulos despistantes e despistados (pela pintura, dirá também Isabel Sabino), enfim, pastas acrílicas ou camadas (espécie de abozzo) onde se desenha pictoricamente com descomprometidas mas regradas incisões, às quais a matéria “fala” e condiciona, do informalismo ao informe (entidades opostas, como explicitam, e bem, Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois).[8]

 

 

 

 

4.

Um último comentário aos títulos de Isabel Sabino: Chita com paisagemGatinhos de chocolate;Atirador de facas soft killerCãezinhos amestradosAtirador de facas roxo;Chico não me apetece escrever hoje;Zé Pedro o arquitecto vigilante;À beira do circoÀs paredes confesso – abstracta com friso;Com Mandrake; Combate fluvial; Oschapéus da BarbieDança das sombras bêbadas; BailinhoO papão da CamilaPrendas, gifts & regalos;As jóias esperadasÉ muito tarde, e vem aí chuva… O rádio toca baixinho la ultima noche. SnoozeInocentes ou pecadores, a nenhum a pele se aproveita;Na noite antes um cavalo tropeça num talo de couve;A casa dos espíritos: os antigos e os novos; Pratos do dia: chanfana ou caldeiradaHoje não fui ao shoppingGostava de estar aqui?Reality showEmbarque na aventura;Stridono lassù; Fly or fall, é consoante; You yourself live in the images;É preciso mandar arranjar o telhado;A ventoinha está a fazer um barulho esquisito;Four seasons, please…………. De um modo directo, Isabel Sabino diz-nos que as cores trocam as voltas aos títulos. Entretanto estes trocam também as voltas, ou pelo menos tentam, às cores; mas como cada tela é uma unidade (na dispersão aguada e na bravia natureza quase sem espaços vazios), não são talvez as cores que trocam as voltas aos títulos, é a pintura que não só lhes troca as voltas, como se lhes impõe a imagem do seu fazer. Interminável e persistente. Há um momento no Tractatus Logico-Philosophicus em que Wittgenstein escreve:

 

6.54      As minhas proposições são elucidativas pelo facto de que aquele       

        que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido,          

        quando por elas se elevou para lá delas. (Tem que, por assim    

         dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela.)

        Tem que transcender estas proposições; depois vê o mundo a

         direito.

         Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em

                    silêncio.[9]

 

Pensemos nos títulos da autora como proposições. Entendemo-los, sim, mas não fazem sentido, apenas porque aquilo que fica do seu sentido é a pintura que os faz existirem. E se os títulos adquirem um ponto em que não fazem sentido é porque, algures, eles também quiseram ser pintura(s). Mais do que poemas ou proposições. É a partir daqui que nos despojamos da palavra, ou da imagem em movimento, para aportarmos ao pictórico. Que está sempre por construir. 

     Ora, como a pintura é uma arte organicamente sem termo (ou o poema contínuo), a relação entre palavra e quadro (fazendo-se) é uma incógnita. E esta é a incógnita da pintura, o que se passa entre a vontade e o quadro. Por isso se pode definir a pintura como a perfeita equação do visível.

 

 

 



[1]Confrontando o seu par acontecimento-verdade, de que a arte é uma das entidades produtoras (como a ciência, o amor e a política), Alain Badiou, prezando nesse par a irrupção do inédito que escapa ao conhecimento e se alicerça numa subjectividade radical, Badiou, dizia, vê em Descartes um “aliado” quando, em Les Méditations Métaphysiquesou Principes de la Philosophie, nos fala de verdades (artísticas, as que aqui nos interessam) que nada são fora do nosso pensamento: “Les vérités sont sans existence. Est-ce à dire qu’elles n’existent pas du tout? Nullement. Elles n’ont aucune existence substantielle.” Descartes por Badiou, Logiques des Mondes: L’Être et lévénement 2, Paris, Seuil, 2006, p. 13.

[2]Isabel Sabino, São rosas, meu, catálogo, Lisboa, Gal. Arte Periférica, 2011.

[3]Isabel Sabino, A Pintura Depois da Pintura, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2000, p, 230.

[4]Ver Stanley Cavell, The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film, Harvard University Press, 1971.

[5]Ver Johan Huizinga, Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura, trad. João Paulo Monteiro, S. Paulo, Perspectiva, 1980.

[6]Ver Brian O’Doherty, Inside the White Cube: The Ideology of the Gallery Space, University of California Press, 1986.

[7]Cfr. Ilya Kabakov, Über Die “Totale” Installatio / On the “Total” Installation, Ostfildern, Cantz, 1995, pp. 243-249 (Introdução ao problema).

[8]É a mais rigorosa releitura de Bataille, manifesta em exposição e livro: Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois, L’Informe: Mode d’emploi,Paris, Centre Pompidou, 1996.

[9]Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico, trad. M. S. Lourenço, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 142.

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